Excelência produtiva e projeção comunitária, não mais o pior para os pobres

É insustentável, além de sumamente pernicioso, oferecer às pessoas em situação de pobreza conhecimentos e tecnologias de descarte, longa prática baseada em ignorância ou preconceitos. Não é certo que não possa ser oferecida excelência produtiva e de gestão aos que nada ou pouco têm. Existem os recursos e as modalidades organizativas e financeiras para incluir como produtores esses imensos segmentos populacionais. Só requer um firme e esclarecido apoio político, estabelecer desenvolvedoras e fideicomissos específicos, e respeito, muito respeito.

Existem muitas diferentes atitudes com respeito à pobreza. Alguns a ignoram ou são indiferentes, como se fosse um componente normal e aceitável da orografia urbana ou rural. Outros, mais agressivos, insultam as pessoas em situação de pobreza; apelidam-nas de vagabundos, ineptos ou qualquer outro degradante qualificativo. Chegam, inclusive, a rechaçar que recebam qualquer tipo de subsídios. Não lhes cabe que as pessoas pobres não dispõem das condições necessárias para sair de situações que elas não escolheram e que essas mínimas rendas que recebem como subsídio na maioria dos casos só permitem sortear a indigência assegurando um mínimo de subsistência. Ao mesmo tempo, não consideram quantas pessoas afluentes são rentistas, vivem só parcialmente de seu trabalho ou sem trabalhar, e quantas delas logram se assegurar de bons sustentos pela ajuda econômica, educativa ou de contatos que dispuseram desde quase o começo.

Atitudes degradantes aos que estão em situação de pobreza podem ser confrontadas não só politicamente, mas também aportando esclarecimento sobre como e por que existe e se reproduz no tempo a pobreza; que não é um fenômeno natural inevitável mas o resultado de como as sociedades se estruturaram deixando favorecidos e desfavorecidos.

É dura a situação de pobreza; é um traumático e desmerecido castigo para imensas populações deste mundo; é também uma impiedosa maneira de esterilizar o tremendo potencial de trabalho, colaboração e criatividade que se aninha em todo ser humano.

Abordagem da pobreza

As situações de pobreza e de desigualdade requerem ser abordadas tanto desde o nível das políticas públicas que incidem sobre o rumo sistêmico, a forma de funcionar e o contexto cultural e de valores de um país como, ao mesmo tempo, desde o nível de apoio direto aos setores populares e setores médios empobrecidos. Estes incluem, entre outros, a pequenos e micro produtores de manufaturas e serviços, a empregados ocasionais ou permanentes não registrados, a produtores da agricultura familiar e, por certo, a desempregados que vegetam nos interstícios de nossos sistemas econômicos.

Essa convergência de políticas públicas, regulações e apoios diretos a setores populares e setores médios é imprescindível para encarar com algum grau de sucesso as situações de desigualdade e de pobreza e, desde aí, contribuir de maneira decisiva a um desenvolvimento sustentável e com menos tensões da sociedade em seu conjunto. De outra forma, medidas macroeconômicas favoráveis poderiam cair em um contexto popular sem capacidade de aproveitá-las ou, de igual modo, apoios diretos à base social poderiam resultar inúteis ou com mínimos efeitos se não contassem com um contexto macroeconômico favorável.

Apoios individuais, valiosos mas com baixo teto

Nas últimas décadas se deu início a uma diversidade de iniciativas de apoio aos setores populares, alguns de alcance universal (cobrem todas as famílias de uma comunidade) que provem rendas para cobrir muito estreitamente necessidades básicas. Isto se complementa com outros apoios essenciais (não monetários) em matéria de saúde pública, educação gratuita e certos investimentos em saneamento ambiental. Em alguns casos, se aportam subsídios para empresas prestadoras de serviços de transporte, eletricidade, gás e água potável de modo a conter eventuais aumentos de tarifas a setores vulneráveis.

No plano produtivo, âmbito crítico para assegurar as famílias a dignidade do trabalho e fluxos sustáveis de rendas, se oferecem programas de capacitação, assistência técnica e microcrédito. Todos esses são meritórios e podem sempre ser melhorados em efetividade e cobertura. Não obstante, tem um teto restringido de viabilidade porque se topam com um grave limitante que é a escala dos empreendimentos que se promovem com esses instrumentos.

Uma pequena escala de produção afeta a capacidade de gestão e de lograr excedentes para financiar melhoras e investimentos que permitam acessar a trilhas de reprodução ampliada; isto é, a um desenvolvimento orgânico que possa se sustentar por si mesmo. Salvo exceções que tão somente confirma a regra, como poderia um pequeno empreendedor com escassíssimos recursos se ocupar de produzir o mais apropriado para a demanda a que acessa, comprar bons insumos e se prover dos serviços que requer, trabalhar com uma tecnologia simples mas não rudimentar e gravosa, comercializar seus produtos em nichos de mercado mais favoráveis, defender o preço do que produz se não tem capacidade de negociar melhoras no interior de cadeiras de valor nas que sua própria atividade é marginal e subordinada a atores de muito maior envergadura? Como faz o pequeno empreendedor para encarar obrigações trabalhistas, licenças, taxas, impostos e outras obrigações estabelecidas para atividades de maior tamanho e rentabilidade? Como poderia impedir que sua vulnerabilidade o situe como presa fácil de chantagens e propinas por parte de inspetores e oficiais de justiça?

Enquanto setores populares e médios se estancam ou retrocedem, outros atores de maior tamanho e influência utilizam mecanismos financeiros para lucrar impiedosamente ou dispõem de facilidades tecnológicas, creditícias e de comercialização que lhes geram taxas de lucro às quais os pequenos jamais poderão acessar se seguirem produzindo isoladamente. A pequena escala coloca tetos limites muito baixos para funcionar e crescer.

Em outros textos procuramos situar estes específicos fatos socioeconômicos no contexto do processo concentrador da riqueza e das decisões que hoje prima em quase todos os países do mundo. Vale conhecer e compreender o que geram essas dinâmicas maiores para apresentar com o maior realismo possível iniciativas transformadoras como as que seguem em continuação.

Encarar a escala produtiva, subir o limite

Uma maior escala possibilita acessar apoios de excelência; já não mais o pior para os pobres. Há recursos para isso que poderiam ser canalizados por meio de fideicomissos especializados e também existem apropriadas modalidades organizativas para consegui-lo: cooperativas de primeiro e segundo grau; consórcios de pequenos produtores para comprar insumos, prover-se de tecnologia e comercializar; empresas recuperadas por seus trabalhadores; comercializadoras comunitárias; agroindústrias locomotoras de propriedade associativa que viabilizam a produção de pequenos produtores da agricultura familiar; franquias populares de propriedade dos franqueados às vezes coligados com um sócio estratégico; supermercados comunitários; núcleos comunitários de transporte e logística, entre muitos outros.

Mas tudo isso não surge espontaneamente nos mercados existentes onde quem conhece como fazer essas questões utiliza seu saber e habilidade para proveito próprio. Será preciso estabelecer desenvolvedoras destes empreendimentos que são parte da economia popular: estas seriam chamadas a aportar excelência organizativa, tecnológica e de gestão, assim como acesso a críticos fatores, em particular, como se inserir em promissoras cadeias de valor , bons contatos e oportunidades, dispor de crédito de curto e médio prazo, incursionar em novos mercados e evitar abusos , estabelecer alianças estratégicas, manter-se informados de tendências, oportunidades e riscos em seu setor e no contato macroeconômico. Isto é, todo o necessário para operar com êxito o processo de gerar valor e de retê-lo de modo a poder capitalizar-se e sustentar-se no tempo.

Promover estas novas, bem efetivas unidades econômicas de porte médio e base popular é possível, viável e de enorme impacto social e econômico. Requer, isso sim, de apropriado respaldo político já que dar marcha a uma estratégia desta natureza exige envergadura e profundidade de alcance; não são poucos nem menores os obstáculos a superar.

Projeção comunitária dos empreendimentos da economia popular: não mais atores selvagens

Nenhum empreendimento ou iniciativa produtiva opera isolada do que acontece ao seu redor. Ao contrário, fazem parte de comunidades que lutam por resolver suas necessidades. Nos tempos que correm, com frequência se prioriza a ação individual, apontar para o próprio proveito. Nessa perspectiva, se perde de vista que a colaboração e o apoio mútuo ajudam a encarar desafios e mitigar riscos, refletem o melhor da condição humana.

Os atores da economia popular necessitam promover outros bem diferentes valores que aqueles que costumam primar nos mercados contemporâneos. Não é a cobiça, o egoísmo, a voracidade, os maus tratos aos demais, o puro lucro que os guia. Mais lhes pertencem valores de responsabilidade com a Mãe Terra e de solidariedade para com os demais. O esforço de assistir os que sofrem a situação de pobreza perderia seu sentido se tão logo servisse para gerar mais atores selvagens que se agregassem à selvageria que já existe nos mercados contemporâneos.

Também é certo que os valores não se impõem, mas se adotam do meio e da família em que cada um se desenvolve. Daí que este crítico aspecto chegue entrelaçando o que a própria economia popular seja capaz de gerar, com a tremenda influência valorativa que emerge dos formadores de valores e de atitudes, sejam estes líderes sociais, religiosos, sindicais, políticos, culturais ou empresariais, assim como os temíveis meios hegemônicos de comunicação.

É insustentável, além de sumamente pernicioso, oferecer às pessoas em situação de pobreza conhecimentos e tecnologias descartáveis, longa prática baseada em ignorância ou preconceitos. Não é certo que não se possa ser oferecida excelência produtiva e de gestão aos que nada ou pouco têm. Existem os recursos e as modalidades organizativas e financeiras para incluir como produtores esses imensos segmentos populacionais. As pessoas empobrecidas não são causadoras de sua situação, mas, valorizadas e assistidas, fazem parte essencial de efetivas soluções. Só se requer firme e esclarecido apoio político, estabelecer desenvolvedoras e fideicomissos específicos, e respeito, muito respeito.

 

** Agradeço a meu irmão Héctor Carlos Mizrahi por seu acompanhamento e comentarios.

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