O maior componente da desigualdade: a apropriação de valor gerado por outros

Uma recordação sobre os principais fatores que geram desigualdade e a futilidade de pretender transformar o processo concentrador da riqueza e do poder sem enfrentar os grandes mecanismos de apropriação de valor.

Muito se debate sobre a desigualdade quanto à sua dimensão, os efeitos que produz e como abatê-la; são todas questões estreitamente ligadas. Quando a desigualdade é enorme e não cessa de crescer, como ocorre no mundo contemporâneo, a trajetória global e de cada uma das economias nacionais se alheia dramaticamente de critérios de equidade e justiça, assim como de sua própria sustentabilidade. O que explica a futilidade dessas estratégias em quase todos os países afluentes e também em algumas economias emergentes, passa pela debilidade de como é concebida sua origem (viés ideológico que encobre os interesses dos que lucram com as desigualdades) e pela debilidade política que prima nos países onde manda o capital financeiro, o que impede aplicar soluções de fundo para transformar o atual processo de concentração econômica.

A origem da desigualdade

Em verdade, deveríamos falar das origens da desigualdade, uma vez que não existe uma única origem, mas sim várias, que historicamente se vão sobrepondo para formar o dramático quadro da desigualdade contemporânea. Não obstante, nem todas essas causas têm o mesmo peso. Isto é, existe uma variedade de fatores que contribuem para gerar desigualdade incluindo, entre outros, as negociações salariais entre partes de desigual poder, diferenças de produtividades, os que aproveitam os descobrimentos tecnológicos e medicinais, a distribuição social e territorial do conhecimento, da informação e dos contatos, o ter sido colônicas das que se extraíram ingentes recursos ou colonizadores que deles se apropriaram, melhores ou piores políticas de desenvolvimento. Todos os fatores geradores de desigualdade deveriam ser identificados, considerados e, segundo corresponda, assegurar que seus impactos negativos se reduzam ao máximo possível. Todos têm um subjacente comum denominador mas alguns explicam mais que outros o explosivo e persistente crescimento da desigualdade nas últimas décadas; não por casualidade costumam ser ignorados ou dissimulados. Esses fatores fazem a apropriação em grande escala do valor gerado por outros realizada por poderosos grupos econômicos, o crime organizado e, em menor medida, ainda que com grave impacto para o funcionamento social, a corrupção política, midiática, empresarial, sindical e judicial.

É que ninguém pode somente com o suor de sua fronte, com base no próprio esforço, acumular riqueza e, portanto, poder ao ritmo que fazem os setores apropriadores de valor. Isso deveria ficar absolutamente claro, ainda que possa se citar exceções que não fazem além de justificar essa penosa e indignante afirmação.

Nem todos os que acumulam a essa taxas se assumem como delinquentes apropriadores de valores que não geraram, uma vez que há os que cuidam de atuar dentro dos marcos legais que ajudaram a estabelecer. Marcos legais que, certamente, favorecem-lhes, enquanto prejudicam grandes maiorias, como a desregulação do sistema financeiro, as imposições incluídas em tratados comerciais ou trabalhistas, o aproveitarem-se, por meio da lei mesma, dos frágeis e vulneráveis, as perseguições e o silenciamento dos que impulsionam transformações. Outros apropriadores, ademais de agirem de forma ilegítima amparados pela ordem que forçaram sobre os demais, operam ilegalmente violando, inclusive, a ordem jurídica que lhes favorece.

Mecanismos de apropriação de valor gerado por outros

Os mecanismos de apropriação de valor são múltiplos e diversos; a maioria deles, sutis ou encobertos, porque não resistiriam operar nem ser defendidos a céu aberto. Podem se destacar, entre muitos outros, alguns traços que os caracterizam.

- A tremenda mobilidade do capital financeiro, amparada na oprobriosa desregulação dos sistemas financeiros que lograram impor, permite-lhes forçar uma especulação sem limites espaciais ou temporais. Com seu poder de fogo podem não só aproveitar mas também gerar todo tipo de situações de estresse financeiro que lhes favorecem, desde crises, como a que hoje amedronta o mundo, até desvalorização cambiária, o fato de entrar com força em certos mercados e depois abandoná-los intempestivamente com graves consequências; aprofundam a fuga de capitais, aproveitam para seu próprio benefício uma eventual suspensão de pagamentos, quebras corporativas, asfixias financeiras; se veem ameaçados os seus privilégios, desestabilizam governos e outros grupos econômicos, suscitam uma variedade de conflitos sociais e geopolíticos. Em todas essas situações lucram desaforadamente, sem piedade nem misericórdia alguma. Pouco lhes importa se sua ação especulativa causa mortes, destruição ambiental, desassossego, quebras institucionais, conflitos bélicos; tampouco se seus lucros são produzidos em associação com o crime organizado, delitos econômicos, corrupção política ou lavagem de recursos mal havidos. Agem como abutres sobre povos e sociedade gerando penúria e destruição.

- O díspar poder financeiro de que dispõem os setores apropriadores lhes habilita a realizar manobras para adquirir a preço vil os ativos de atores que atravessam difíceis situações e carecem de qualquer tipo de proteção ou ajuda. Com isso, os apropriadores conseguem fazer crescer geometricamente sua riqueza acumulando ainda mais valor que não geraram.

- Os que detêm poder de mercado devido a seu tamanho ou posição oligopólica têm a capacidade de abusar de seus fornecedores e clientes através da imposição de preços e outras condições que lhes permitem obter ilegítimos lucros extraordinários. Os preços se transformam, assim, em sutis mecanismos de apropriação de valor por parte dos que têm a capacidade de impor por essa via seus interesses. As organizações de produtores e de consumidores procuram conter esse abusivo proceder, mas é tal a assimetria de poder entre atores que convergem nos mercados que, em última instância, depende do Estado para que regule a ação econômica e impeça os abusos derivados das diferenças de poder. Daí que a situação se descontrole, ou seja, “se proceda sem respeito nem medida até perder a mesura e a dignidade”, quando o Estado é colonizado pelo poder econômico com a cumplicidade de setores da política, dos meios e da Justiça; em lugar de assegurar equidade, o Estado termina defendendo os interesses do privilégio.

- Em seu afã de acumular valor a todo custo, o poder econômico evade de se encarregar até mesmo de suas responsabilidades tributárias, enquanto que cidadãos comuns pagam taxas, impostos e outras contribuições fiscais. São conhecidos os mecanismos que se utilizam para materializar a enorme evasão de impostos que grandes corporações realizam, por exemplo: ao exportar para subsidiárias baseadas em outras jurisdições relaxadas quanto a impostos e transparência. Apresentam faturas de venda a preço a menor com o que minimizam lucros no país onde o valor foi gerado, enquanto que as subsidiárias vendem essa exportação ao destinatário final a preço de mercado, obtendo lucros ilegais que logo remetem a suas matrizes radicadas em países centrais ou, mais frequentemente, em guaridas fiscais.

- As guaridas fiscais recebem remessas ilegais, ou quando menos, ilegítimas, de certas grandes corporações junto com outras provenientes do crime organizado e da corrupção política, midiática, judicial e sindical. Quanto à magnitude, as remessas da corrupção formam 3% dos recursos depositados em guaridas fiscais, as do crime organizado representam 35% e o resto, quase dois terços do que se esconde nessas guaridas, provém do poder econômico: corporações e famílias afluentes dos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e outros países centrais, mas também de setores de alta renda da América Latina, África e de países assediados, como Grécia, Espanha e Portugal, cujos povos têm sido submetidos a devastadores ajustes pelos menos poderes que geraram a crise e evadem suas responsabilidades.

Debilidade política e críticos pontos de intervenção

Neste quadro de situação, fica claro que abater a desigualdade é uma ação essencialmente política. Difícil crer que se conseguirá abater as desigualdades se os que lucram com elas mantêm seu controle sobre a marcha global e as trajetórias nacionais. Tão só quando veem perigar o conjunto de seus privilégios e consideram que poderá colapsar o sistema do qual lucram se veem a introduzir mínimas transformações para que o essencial não mude. É o que tem sido visto acontecer através da história da humanidade, só que, nestas décadas, os tempos se aceleraram mais que os reflexos dos timoneiros da apropriação de valor.

Em alguns países, a repressão da vontade transformadora se adaptou às circunstâncias democráticas. Salvo em determinados casos, já não se acode à força bruta como a primeira linha de defesa de ordem estabelecida; hoje prima manipular a opinião pública, desestabilizar, suscitar desuniões, promover a alienação para desviar a atenção e esterilizar as energias que poderiam ser mobilizadas para encarar injustiças, desigualdades, privilégios. Ainda assim, é impossível eliminar por completo o arbítrio social e a vontade transformadora que germina com cada geração. Cresce a indignação, espandem-se os conhecimentos, pesa mais a mobilização social e emergem novas lideranças políticas voltadas a transformar a dinâmica concentradora para dar passo a mais justas sociedades.

Um desafio adicional que as forças transformadoras enfrentam é que lhes cabe buscar novos cursos de ação e desenvolver a organização do trabalho sobre a marcha; este não ocorre com as forças conservadoras que utilizam instituições e mecanismos já existentes para aplicar bem conhecidas políticas orientadas para preservar ou restaurar seus interesses.

Nos processos transformadores, as frentes em que é necessário agir são múltiplas e, se bem o ideal seja abordar em conjunto todas as causas geradoras de desigualdade, isto nem sempre é possível. Hoje há muito e variado por fazer e as dificuldades a enfrentar são consideráveis. Nesse contexto, dispersar esforços pode comprometer a sustentabilidade de trajetória. Daí que o crítico resulta em hierarquizar as iniciativas e escolher os pontos estratégicos de intervenção sobre os quais concentrar os maiores esforços. Ainda que seja mais simples, no começo não é o melhor focar com furor nas mesquinharias dos pequenos transgressores quando os grandes canalhas seguem sangrando o país.

É assim que um foco prioritário de qualquer intervenção transformadora deveria ser abater um a um os principais mecanismos de apropriação de valor que estivessem vigentes, incluindo os acima descritos; algo nada simples de realizar, mas que é imprescindível e refundacional encarar.

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