Desmontar a inflação, o encoberto

A inflação se apresenta como indomável e não o é. Desmontá-la ou reduzi-la a um baixo nível é possível sempre e quando se tomem medidas que também encarem causas que permanecem encobertas. Vale explicitar a natureza dessas causas e a identidade de quem as mantém encobertas.

Muitos sustentamos que a inflação é um fenômeno multicausal, isto é, que várias causas convergem para gerar a inflação. Algumas causas geram e outras impulsionam a inflação. Há causas políticas, econômicas e sociais que se condicionam entre si, mas o crítico é que há causas que se reconhecem abertamente e outras que se mantêm encobertas. Se não se encarassem as causas encobertas será muito difícil desmontar a inflação. Disso tratam as linhas que se seguem.

Sem abandonar a noção que a inflação é um processo complexo multidimensinal, pode ajudar diferenciar níveis explicativos e consequentemente de intervenção. Um desses níveis é o das variáveis macroeconômicas, outro nível refere a como se estruturam e funcionam os mercados (a mesoeconomia), um terceiro nível que não abordamos nesse curto texto é sobre as forças que reproduzem a inflação, entre outras as expectativas que se inseminam nos atores por razões espúrias.

Vale recordar que os atores atuam defendendo interesses materiais junto com uma mescla de reações identitárias, valorativas, ideológicas, uma cambiante diversidade de motivações no momento de tomar decisões. 

Causas em nível macroeconômico

Algumas das causas mais significativas neste nível se referem ao ordenamento das contas públicas, aos montantes da emissão monetária e a uma estabilidade cambial que assegure disponibilidade de divisas para evitar graves estrangulamentos do setor externo. A estas causas agregamos outra crítica causa que condiciona as demais e, não por casualidade, certos setores procuram encobri-la, a drenagem delitiva de uma parte muito significativa da poupança nacional.

O ordenamento das contas públicas

Com frequência ocorre que os gastos públicos superam os ingressos fiscais, gerando situações de déficit fiscal. A pressão para que o Estado proveja infraestrutura social e produtiva contrasta com recursos que não são infinitos. Essa tensão se agrava quando vemos de onde proveem as rendas e como se aplicam através do gasto público.

As principais rendas proveem dos impostos e das contribuições de melhoria que arrecada, de aportes de empresas públicas superavitárias e do endividamento soberano que se contrai na moeda local ou em divisas. Vejamos que costuma ocorrer nessa cadeia de variáveis e no tipo de soluções que costuma se impor.

No nível das rendas públicas, a estrutura prevalecente é altamente regressiva, isto é, que o peso da arrecadação recai sobre os setores médios e populares. Algo inaudito mas real, os ricos pagam proporcionalmente menos que os demais. Isto não acontece por casualidade mas pelo desígnio político dos dominadores de bloquear as tentativas de estabelecer uma estrutura tributária progressiva. Dessa forma, asseguram que não se afete a concentração da riqueza por mais que aumente a inequidade de duras desigualdades. 

Por sua vez, o gasto público costuma apresentar inaceitáveis injustiças em favor de setores de altas rendas. Se é necessário que o Estado proveja infraestrutura produtiva que favorece aos que mais têm, nesses casos deve cobrar a contribuição por melhoras que as leis estabelecem. De igual modo, se se outorgam subsídios a grandes fornecedores de serviços é crítico verificar que não existem tramas encobertas que falseiam os montantes e a necessidade das demandas. Se esses lançamentos desaparecessem ou se reduzissem como correspondem, o gasto público poderia cobrir mais extensamente as necessidades de setores médios e populares, assegurando sempre efetividade e transparência em sua execução. Eis aqui outro desafio de natureza política com respaldo técnico dos que ajudam a estruturar o orçamento nacional.

Como os poderosos impedem de melhorar a estrutura de ingressos e gastos públicos, o tipo de soluções que impõem para resolver um déficit fiscal termina sendo ruinoso para o país. Se concentram religiosamente em reduzir o gasto público que atende os setores médios e populares (educação, saúde, seguridade social, cuidado ambiental, entre outros) e, como isso costuma ser insuficiente forçam o endividamento do Estado, uma solução que se é ocasional pode ajudar, mas se se repete pagando juros e refinanciando o montante da dúvida, produz uma perigosíssima queda, precipitar a superendividamento soberano. Longe de ser uma solução, condiciona severamente a soberania nacional, a asfixia, já que em lugar de adotar decisões a favor do país, os credores impõem medidas que lhes assegure cobrar seus créditos reproduzindo a submissão financeira. Outro resultado urdido por perversas decisões políticas.

A emissão monetária

No seio dessas tensões e conflitos opera a emissão monetária para fechar as brechas que não são encaradas com melhores ingressos e gastos, a mais genuína forma de encarar um deficit fiscal. A criação de moeda local é necessária em um certo nível para acompanhar a induzir um sustentado crescimento. Não obstante, passado em um certo nível uma emissão desmedida tende a aumentar as tensões inflacionárias. Não surpreende que o neoliberalismo hierarquize religiosamente a emissão monetária como a principal causa inflacionária, ainda que a experiência histórica mostra muitos casos onde foi reduzida a emissão a quase zero e a inflação persistiu ou, inclusive, aumentou.

Como foi assinalado, a inflação é gerada por múltiplas causas, particularmente, pelas que se mantêm encobertas por desígnio de poderosas minorias orientadas para favorecer seus interesses às expensas dos demais. Escondem em argumentos ideológicos razões que são indefensáveis a céu aberto.

A estabilidade cambial para evitar estrangulamentos do setor externo

Outro crítico fator é assegurar certa estabilidade cambial. Fortes desvalorizações do tipo de câmbio têm um efeito inflacionário porque incrementam o custo dos bens e serviços importados e produzem diversos reajustes em muitos outros preços, ainda que poucas vezes em salários e outras remunerações de setores médios e populares. Nas seguintes linhas, veremos como isto se produz no contexto de uma enorme drenagem delitiva de excedentes e em estruturas altamente oligopólicas dos mercados.

Sem abordar soluções de fundo, as margens de ações se reduzem significativamente forçando desvalorizações da própria moeda para favorecer às exportações e, em algum grau, conter as importações. Estas medidas fazem parte de políticas de ajuste que castigam os setores médios e populares provocando recessão ou um forte retraimento do ritmo de crescimento com fechamento de empresas e perda de empregos.

Também aparecem outras causas inesperadas como a pandemia de Covid e as guerras na Ucrânia e outros lugares que subvertem os canais de provisão de bens, insumos e energia com sérios efeitos sobre preços e disponibilidade comercial. Países que contam com poucas reservas de divisas sofrem mais duramente os negativos impactos sobre sua estabilidade cambial.

A drenagem de grande parte da poupança nacional

O primeiro a destacar é que a drenagem delitiva de recursos é enorme e permanente. Drenagem que se realiza utilizando diversos mecanismos, quase todos ilegais. Entre os mais significativos, a evasão ou a elusão tributária, e a manipulação criminosa do comércio exterior que derivam na fuga ao exterior desses recursos mal havidos. 

A evasão e elusão tributária se realiza com a assistência de especialista e a cumplicidade de funcionários responsáveis do controle tributário e de regular o comércio exterior junto com certa parte do sistema financeiro.

Em matéria de comércio exterior, a maior drenagem se materializa entre corporações e suas subsidiárias ou empresas associadas. As corporações subfaturam exportações e superfaturam as importações ao vender ou comprar a seus associados de modo a reduzir ganhos sujeitos a cargas tributárias. São ações sancionadas pelas leis vigentes, mas as realizam com quase total impunidade. Os delitos que se descobrem são muito poucos e as multas aplicadas ínfimas em relação à tremenda drenagem de recursos que realizam e continuam fazendo. Outras modalidades utilizadas com a finalidade de evadir tributos referem a realizar saídas ou entradas não registradas de produtos, e a efetuar pagamentos de honorários por serviços não realizados ou aumentados falsamente.

Excelentes pesquisas têm estimado a magnitude desses delitos e identificado quem os realizam. Não obstante, a enorme drenagem segue sangrando povos que são quem sofre os nefastos efeitos dos enormes roubos de “colarinho branco” que esterilizam uma alta proporção da poupança nacional. Se se fechasse essa drenagem, esse fluxo de recursos poderia se dedicar como genuína solução para ordenar as contas públicas reduzindo ou eliminando o deficit fiscal, para conter uma descontrolada emissão monetária já que se disporia de outra importante fonte de recursos e para reforçar a estabilidade cambial ao evitar fugas que se fazem sempre em divisas e nunca em moeda local. Em definitivo, cortar essa drenagem ajudaria a desmontar boa parte das causas inflacionárias sem castigar setores médios e populares.

Sendo assim, cabe perguntar por que não se encaram estas ruinosas causas encobertas da inflação. Outra vez, a mesma resposta: há uma colusão política que impede de adotar uma firme intervenção que assegure justiça, equidade e sustentabilidade ao desenvolvimento.

Causas no nível da estrutura e funcionamento dos mercados

A estrutura e funcionamento dos mercados pode ser encarada em duas frentes principais: o da matriz produtiva de um país e o de suas principais cadeias de valor.

Nos países não centrais, colonizados formal ou informalmente, a matriz produtiva se foi formando por múltiplas decisões de investimento que se adaptaram a políticas impostas pelos centros de poder. Esse jogo de forças geopolíticas nos levou a ser principalmente fornecedores de produtos primários e importadores do resto (aquilo que produziam os que colonizaram o mundo). Na medida em que crescia o mercado interno nasceram indústrias para atender o consumo de emergentes setores médios e amplos setores populares. Essas indústrias importavam seus bens de capital e seus principais insumos com preços relativamente mais altos que os dos produtos exportados e, em boa medida, seguem fazendo-o, mas com uma mudança transcendente. Enquanto que em um princípio eram pequenas empresas locais, com o tempo foram substituídas por outras empresas subsidiárias ou associadas com grandes corporações internacionais que condicionaram as compras de bens de capital, insumos e remessas de utilidades às necessidades e estratégias de suas casas matrizes. 

Essa racionalidade dos grandes conglomerados não se compadece com as possibilidades da economia local e as necessidades das maiorias populacionais. Se consagrou uma matriz produtiva intensiva em importações e dependente de decisões adotadas em outras latitudes. O Estado detém pouca capacidade de influir sobre em que se investe e muitos menos quando, quanto e onde se investe. A matriz produtiva se reproduz ao ritmo e na direção de decisões privadas que ignoram ou se desentendem dos impactos que seus investimentos tendem sobre o conjunto da economia. Isto conduz a que se apresentem recorrentes situações de instabilidade sistêmica, como quando as divisas disponíveis não alcançam a satisfazer demandas para importar bens, serviços e remeter ganhos a casas matrizes, os temíveis estrangulamentos de setor externo. O sistema econômico entra em crise e fica a mercê de soluções que não defendem os interesses do conjunto, mas de grandes conglomerados econômicos que de todos os modos acumulam lucros. Muito distinto seria o governo fosse sustentado por uma firme coalizão política orientada a transformar com passos firmes e cautos a estrutura da matriz produtiva. O político voltar a ser determinante.

A outra frente de intervenção se faz à estrutura e funcionamento das principais cadeias de valor. Estas cadeias produtivas estão formadas por empresas líderes, médios e pequenos fornecedores, quem consome ou utiliza seus produtos e o Estado que lhes provê de diversas infraestruturas produtivas. A estrutura dessas cadeias termina sendo altamente heterogênea, as empresas líderes concentram os benefícios e o resto acompanha perdendo parte do valor que lhes pertence.

Certas cadeias de valor controlam os mercados em que operam, são oligopólios com poder de fixar preços e condições comerciais. Em frases inflacionárias asseguram seus lucros com permanentes remarcações, com frequência mais além da taxa de inflação. Isso agrega pressões para que os demais atores ajustem como puderem seus preços e a inflação não se detenha ou diminua. É uma ruinosa disputa distributiva onde saem airosos os mais fortes.

Isto pode ser controlado com intervenções que regulem a distribuição de resultados ao interior de cada cadeia de valor e os preços finais a seus consumidos. Uma opção complementar é reforçar outras cadeias de valor. Assim, em matéria alimentar podem se promover cooperativas que potencializem a agricultura familiar de cercania ou, no têxtil, associações de pequenos produtores e comercializadores.

Em todo caso, neste espaço mesoeconômico também o político é determinante.

Em conclusão, vemos que existem importantíssimas causas encobertas que explicam a gênese dos processos inflacionários. Está longe de se originar na emissão monetária, ainda que possa ser um fator que agrega pressões adicionais. Não é casualidade que as causas encobertas estejam relacionadas com decisões políticas que tendem a sustentar o processo concentrador da riqueza e o poder de decisão que prima nos países e no mundo inteiro. Encarar essas causas hoje encobertas é um crítico desafio que não se pode abordar com técnicas econômicas. A decisão transformadora é, em essência de natureza política, não nos enganemos, os tecnicismos econômicos vêm depois para implementar as estratégias adotadas.

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