Como não vai ser possível exercer soberania decisional e eliminar a pobreza e indigência quando é o clamor de bilhões de pessoas no mundo e existem os recursos, o talento, a tecnologia. Só falta determinação para lográ-lo.
Exercer soberania decisional sem mais pobreza e indigência requer sair do pensamento único, estruturado para preservar graves desigualdades e privilégios. Nos enjaularam, entorpeceram, alienaram. Avançamos sem sentido em uma direção que é social e ambientalmente destrutiva por cobiça e egoísmo. Nos movemos em realidades complexas, nebulosas confusas que parecem inaprisionáveis. Estas circunstâncias não se apresentam por casualidade, mas respondem a causalidades derivadas de decisões de quem domina. Cabe desentranhá-las, compreender como submetem nossos arbítrios e trabalhar coletivamente para estabelecer um novo rumo de justiça, paz, equidade, responsabilidade ambiental. Tornar possível esse enganoso impossível.
Encarar o impossível não é saltar em um abismo nem consagrar ingênuos voluntarismos. Destaca, em troca, o compromisso de superar a ignomínia de uma opulência sustentada com o sofrimento de imensas maiorias castigadas sem razão, desprovidas de cuidados, invisibilizadas para não interferir com o devir do privilégio.
Não é simples, mas possível, eliminar a pobreza e a indigência. Isso sim, haverá que desmontar o desaforado processo concentrador que apropria para poucos o produzido por inteiras sociedades e que, ademais, se alça com o poder decisional. Consagram tremendas desigualdades sociais e destruição ambiental.
Por que tolerar, aceitar essa imposição?
Duras e insustentáveis armadilhas
Quando caímos em destrutivas armadilhas sistêmicas cabe mudar o rumo e a forma de funcionar. Se se negassem ou trabalhassem as imprescindíveis mudanças, nos aproximaríamos ainda mais de explosões desbocadas de imprevisíveis consequências. As fúrias e as desesperanças são entendíveis, mas difíceis de canalizar construtivamente. O desafio passa por superar eternas postergações e avançar com esclarecimento e organização na construção coletiva de uma trilha de bem viver, pacífica, valente, incluindo a todos.
Não aceitamos seguir enriquecendo os opulentes em lugar de respaldar a imensa base social dos países, da sofredora humanidade contemporânea. Isto exige encarar diversas frentes de intervenção, desde respeitar o planeta e gerar suficientes espaços de trabalho genuíno, até regular o funcionamento sistêmico e, entre esses extremos, o que faz o cuidado social como centralidade do viver em sociedade, não já apêndice do lucro corporativo.
Nessa rota, haverá que enaltecer o afeto social, destravar a potência represada, dar sentido e significação à colaboração entre diversos e diferentes.
Por onde avançar
É possível avançar com diversas estratégias e medidas porque ninguém tem o monopólio do conhecimento e porque é imprescindível considerar as singulares circunstâncias de cada país e seus momentos. Só cabe destacar alguns dos principais traços desse desafio.
De pronto, é imprescindível desmontar a libertinagem financeiro. Não haverá sociedade alguma que possa assegurar o cuidado de sua população gerando trabalhos e renda digna quando os recursos que se dediquem a especular financeiramente sejam premiados com retornos várias vezes superiores a quem investe e trabalha na economia real. Sabe-se como fazê-lo e a quem cabe enfrentar. Haverá que discernir entre movimentos de capitais que são legais e legítimos e, portanto, podem seguir se realizando, dos que, ilegais ou ilegítimos, configuram modalidades gravemente especulativas que não geram riqueza, trabalho, renda, mas que exploram so demais atores via apropriação de valores por outros gerados. O cidadão comum tem pouca informação sobre como se materializa este latrocínio, mas os responsáveis de regular a ação financeira não desconhecem estas tramas delitivas.
Cabe também desmontar as diferentes modalidades de evasão e elusão tributária, gravíssima injustiça que alimenta a fuga ao exterior de capitais mal havidos. Se não se fechar essa drenagem de recursos, seguirá comprimindo-se ao investimento genuíno e esterilizando seu impacto sobre o desenvolvimento nacional.
Outra frente se refere aos mercados oligopólicos onde um punhado de empresas líderes lucram às custas de fornecedores e consumidores. Abusam de seu poder de mercado para extrair valor dos que integram sua cadeia produtiva, assim como de consumidores forçados a aceitar preços que lhes são impostos. Isto pode ser enfrentado mediando no interior das cadeias produtivas existentes para que os que as formam recebam justas compensações pelo esforço produtivo que aportam e, ao mesmo tempo, como se indica mais adiante, promovendo novas cadeias produtivas com empreendimentos associativos ou familiares de base popular.
Um aspecto crítico cuja resolução requer a convergência de diversas medidas faz a matriz produtiva do país. Em geral, essa matriz se foi gerando a partir de decisões de investimento de grupos particulares interessados em obter o máximo lucro possível sem considerar o funcionamento do país em seu conjunto. Não se prestou atenção a restrições “normais” que os próprios funcionamento inexoravelmente gerava. Uma das mais graves, a temida “restrição de setor externo” aparece quando, ao crescer, o país necessita importar insumos, equipes e bens terminados sem dispor das divisas necessárias para adquiri-los. Sem prever que estes estrangulamentos aparecer, o processo produtivo entra em crise com tremendos impactos sociais e fiscais. Distinto seria se se encarassem as disfuncionalidade de uma matriz produtiva desequilibrada promovendo, ao mesmo tempo, exportações diferenciadas para elevar a entrada de divisas, orientar a novos investimentos para atividades que demandem poucas importações, e promover a substituição de importações com produção local.
Está claro que não necessitam só medidas macro, meso e microeconômicas. Junto com essas, toca encarar os mecanismos de manipulação da opinião pública, estabelecer um serviço de justiça independente do poder econômico e do poder político, e avançar permanentemente em esclarecimento para desterrar valores que sustentam a cobiça, o egoísmo, a indiferença dos demais. A dominação se encarregou de impor um sentido comum que atenta contra a solidariedade, desvaloriza a compaixão, a colaboração e ajuda mútua. Nos moldaram para agir em uma selva social, onde cada um se “salva” por si só, ainda que deva para isso pisar em cabeças, abrir caminho a chicotadas, violar normativas com tal de “triunfar” que, para quem domina, significa acumular riqueza como puder e depois encobrir como foi conseguida.
O desafio de incluir produtivamente quem padece situações de pobreza e indigência
Até aqui focalizamos em liberar um país do latrocínio a que é submetido, pô-lo de pé em um curso soberano e sustentável. Ao fazê-lo, se criam as condições para reduzir a pobreza e a indigência através de mais trabalho formal e melhor renda. Não obstante, as carências que sofrem quem está em situação de pobreza e indigência exige que se adotem outras medidas complementares para que não só se reduza, mas se elimine, a pobreza e indigência. Isto é, que as soluções não se esgotem em subsídios ao consumo popular, mas, ademais, incluíam a plena inclusão produtiva desses setores. Aqui, outro pressuposto “impossível” que pode ser trabalhado para torná-lo possível.
As escassezes de todo tipo que escanteiam enormes segmentos da economia popular tornam necessário apresentar soluções específicas para fazer-lhes frente. Não só se trata de inexistência de recursos financeiros, mas também de escassa ou nenhuma informação sobre oportunidades promissoras, de contatos e formas organizativas para aproveitá-las, de conhecimentos em matéria tecnológica e de acesso a mercados, entre tantas outras restrições. Não deveriam surpreender estas limitações já que são similares às que devem abordar as empresas que operam nos mercados que, com recursos próprios, de acionistas ou creditícios adquirem esses serviços. Apresentamos com firmeza e convicção que a plena inclusão produtiva de quem se encontra em situação de pobreza e indigência é possível, enquanto se concebem formas de assegurar-lhes os serviços que todo esforço produtivo requer.
Para isso, se necessitam instrumentos de apoio que proveem assistência organizativa, técnica e de gestão em respaldo a novos ou existentes empreendimentos de base popular junto a críticos recursos de capital-semente, capital de consolidação e apoio creditício. O importante é que podem se adaptar diferentes modalidades de apoio, incluindo a apresentada em Opinión Sur centrada em dois poderosos instrumentos, as desenvolvedoras de empreendimentos associativos ou familiares de base popular e os fideicomissos especializados em economia popular, ambos trabalhados em conjunto com as organizações sociais da economia popular, assim como são outras entidades de suporte. Destacamos esses instrumentos explicitando que não é a única forma de intervenção, ainda que conhecê-la poder servir para induzir outras modalidades.
Vale encerrar estas linhas reafirmando que é possível exercer soberania decisional para eliminar a pobreza e a indigência. Ninguém poderá fazer-nos crer que é um mais dos “impossíveis”. Isto sim, requer ser parte de um permanente trabalho político de esclarecimento e organização que, deixando para trás estes e outros preconceitos desmobilizadores, permita avançar com determinação.
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