Brisas transformadoras

Por mais que se tente não se consegue congelar a dinâmica social, a compreensão, o esclarecimento. Em meio a retrocessos e submissões, emerge a determinação de parar o atropelo, de erguer-se por sobre o tremendo desassossego. Reaparecem brisas transformadoras; vale alentá-las e protege-las.

 

A América Latina, como outras regiões do mundo, sofreu uma agressão colonizadora que dizimou populações nativas, destruiu civilizações e impôs seus interesses geopolíticos e econômicos. Aquelas colônias foram estruturadas segundo as conveniências do poder colonial submetendo primeiro pela força e logo culturalmente os povos que povoavam a região. Escreveram a história a partir de sua perspectiva e valores sepultando as vozes e as cosmovisões dos oprimidos.

Desde aqueles remotos tempos, houve períodos de liberdade e independência de decisão seguidos de retrocessos, governos ditatoriais, perda de soberania, uma diversidade de novas formas de submissão popular. É uma longa história de dignidades e indignidades, de compromissos que honram e de surdas covardias, de uma mescla de generosidades e mesquinharia. Compreende-se melhor o presente sabendo de onde viemos; possibilita rumarmos com plena consciência de riscos e desafios para uma utopia referencial que cuide da Mãe Terra e nos cubra a todos.

O século XXI amanheceu com diversas primaveras. Novas lideranças perceberam que havia espaços de clamor popular para iniciar outra fase de transformações e o tentaram. Como sempre, com acertos e com erros, com valentes e com traidores. Transformaram o que puderam; para alguns, muito, para outros, pouco. Não obstante, transformaram o suficiente para que os setores que controlam o poder econômico e de decisão sentissem ameaçadas suas posições de privilégio e lançaram abertas ou encobertas contra reformas. As primaveras foram sacudidas e as vozes transformadoras, caladas e desprestigiadas. Os movimentos populares voltaram para o chão com deserções; os oportunistas foram facilmente cooptados; velhos fundamentalismos proclamaram uma vez mais que existe uma única verdade, a deles, falada como inegável, carregada de mentiras, falsidades, interesses encobertos. Como sempre dois países; o dos donos (minúscula fração) e o resto maltratado, confundido, reprimido, castigado com uma impiedosa torrente ideológica e judicial para ceder direitos esforçadamente conquistados. Os velhos mas maquiados cantos de sereia outra vez explicando que as presentes dores são inevitáveis para logo, um indeterminado logo, recuperar o bem-estar que hoje se nos é roubado. Assim estamos nos aproximando da terceira década do século.

Não obstante, por mais que se tente, não se consegue congelar a dinâmica social, a compreensão, o esclarecimento. Em meio a retrocessos e submissões, emerge a determinação de parar o atropelo, de erguer-se por sobre o remendo desassossego. Reaparecem brisas transformadoras.

 Para onde apontar?

Será necessário passar de resistir a recuperar direitos, acessar aos governos e desmontar aquilo que sustenta a submissão econômica e cultural. Haverá que ir mais além de só reconstruir; cabe construir o novo e as condições para que ninguém possa, cedo ou tarde, impor outra vez retrocessos.

Os mecanismos utilizados para preservar o poder econômico e de decisão são conhecidos ainda quando operem encobertos. Até lá haverá que orientar as estratégias. Caberá transformar a matriz produtiva de modo a assegurar um crescimento orgânico que evite cair nos recorrentes estrangulamentos do setor externo e a subordinação a centros forâneos de decisão. Também haverá que robustecer as cadeias de valor estabelecendo relações de equidade entre grandes empresas que lideram e o resto da trama produtiva, para o que será necessário estabelecer espaços que permitam negociar preços justos e condições não abusivas de comercialização. Destacamos que é imprescindível transformar nossos sistemas tributários para assegurar uma progressividade de que hoje carecem (devem pagar efetivamente mais os grupos e pessoas afluentes sem que evadam sua responsabilidade tributária); que é necessário reforçar as negociações salariais de modo a favorecer as rendas dos trabalhadores; que é crítico estabelecer empreendimentos produtivos e sócios estratégicos, para o que podem utilizar-se de instrumentos como as desenvolvedoras de empreendimentos inclusivos e os Fideicomissos Dignidade. Toca acabar com a indigência e minimizar ou eliminar a pobreza. A tremenda desigualdade é inaceitável; seus efeitos são demolidores.

A partir do cultural se desenvolve boa parte do sustento das transformações porque, segundo sejam modeladas nossas subjetividades, serão reforçados arbítrios esclarecidos ou colonizados. Daí que seja imperioso democratizar vozes distantes dos ecos que reiteram mensagens impostas; em lugar de hegemonias alienantes, procurar diversificar aportes e promover conteúdos apartados do insubstancial. Haverá que trabalhar duro para desterrar valores de cobiça e de indiferença com os outros, impulsionando os que sustentam uma ação responsável, solidária, de acompanhamento aos que sofrem. As novas brisas transformadoras requerem reivindicar os oprimidos, os castigados de sempre, estendendo mãos, avançando em esclarecimento, ampliando convocatórias para construir cidadania consciente de direitos e obrigações, firme e sensível ao mesmo tempo.

As medidas transformadoras necessitam se apresentar atendendo circunstâncias e sequências sem deslizar para os arriscados voluntarismos. Ao contrário, o esforço deveria mobilizar talentos e determinação alterando a correlação de forças predominante; os avanços serão frágeis se não se for construído um poder que assegure a renovação e sustentabilidade da marcha social. Nisto não há receitas, mas soluções caso por caso, orientando os esforços para liberar aquelas democracias hoje capturadas, distanciados de qualquer fundamentalismo democrático.

Fortalecer organização e esclarecimento

 Uma senda transformadora necessita robustas organizações sociais e políticas de base popular. Será necessário reforçar organizações que conservem credibilidade e estabelecer outras novas que promovam e defendam espaços inovadores ainda não cobertos. Não existem conjunturas sociais imutáveis mas situações que mudam em distintas direções e velocidades. A própria dinâmica dos processos sociais exige periódicas revisões da ação transformadora. Essas revisões se realizam em nível nacional mas também considerando especificidades setoriais e territoriais que não podem ser captadas a não ser por meio de grupos e pessoas que as vivem. Eles saberão implementar em seus espaços orientações transformadoras apresentadas em nível do conjunto social e estarão em condições de propor ajustes e especificidades para assegurar viabilidade local. Daí que seja crítico estender a forma mais ampla possível a convocatória para participar do esforço transformador.

Não é um desafio simples convocar e integrar em um esforço nacional de transformação a cada vez mais grupos e pessoas; há muito e diverso ao interior do universo popular. Vale insistir que não se trata de acerca-los somente para apoiar as ideias dos dirigentes mas também para enriquecer o esforço transformador com novas ideias e propostas nas múltiplas frentes e dimensões da realidade nacional. Com frequência, só se costuma escutar os que são afins à liderança nacional o que deixa um enorme potencial desaproveitado e, em não poucos casos, ressentidos ou frustrados. É um erro a evitar, especialmente quando começam a emergir novas brisas transformadoras que requerem sejam alentadas e protegidas.

Que canais existem e estão disponíveis para convocar, escutar, integrar vontades na ação transformadora? Os movimentos políticos ou sociais contam com militantes que se movem em setores e territórios e de fato são canais de relacionamento com diferentes estamentos da população. São pessoas enquadradas nos valores, enunciados e demandas dos movimentos em que atuam; formam um importante canal de convocatória ainda que necessitem ser capacitados na específica tarefa de identificar, receber, realizar uma primeira análise e chamar a atenção de seus referentes sobre propostas de pessoas ou coletivos que existem em seu território ou setor.

Essa capacitação deveria ser de tripla via: aprendem a militância e os próprios capacitadores junto com as bases populacionais que se ajuda a mobilizar. Não cabe montar um estrutura burocrática senão equipes ágeis, efetivas, respeitosas da diversidade de perspectivas, com bons critérios para recolher propostas, identificar soluções. Algumas propostas podem requerer melhores desenvolvimentos mas, em lugar de descarta-las, vale identificar elementos com os quais construir. Não é simples captar a essência, a motivação profunda, os interesses que se aninham em toda proposta e, não obstante, é um desafio que deve ser encarado para agregar substância e credibilidade ao esforço de alargar o campo popular.

Alentar e proteger as brisas transformadoras

 Seria ingênuo pensar que os que detêm poder de decisão e forçaram retrocessos sociais vão resignar graciosamente de seus privilégios. Não o fizeram nunca e é possível crer que tampouco o farão nesta conjuntura onde brisas transformadoras começam a novamente a levantar-se. Ao contrário, em sua recente ofensiva, reestruturaram as instituições existentes para resistir com melhores possibilidades eventuais tentativas transformadoras. O campo popular necessita unir forças, erguer-se sobre diferenças secundárias para alentar e proteger a mudança de época que se avizinha. Não serve à dispersão, os narcisismos, fazer prevalecer interesses pessoais por sobre os do conjunto social. Haverá que saber discernir responsáveis de oportunistas, reconhecer vozes honestas bem diferentes do gaguejar dos menestréis do egoísmo e da discórdia.

Todos, absolutamente todos, necessitamos avançar no esclarecimento do porquê as coisas acontecem como acontecem, de compreender as duras consequências dos erros cometidos. É inaudito manter rumos que só servem a interesses de estreitas minorias. Como em toda encruzilhada, cabe advertir das tramoias e construir o poder requerido para superá-las. Por aí germinam as soluções e cresce o sentido de viver em uma democracia cada vez mais plena; uma democracia de todos e para todos. É uma senda cheia de desafios, mesquinharias e altruísmo, é um esforço que honra.

 

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