Opções para a economia popular

Transição da muito pequena à média escala para empreendimentos da economia popular. Pode ser encarado? Que apoios são requeridos?

 

Temos destacado que a economia popular não é um cercado onde deixar encurralados os pobres e marginalizados mas, pelo contrário, pode se transformar em uma das colunas fundantes de um novo rumo e forma de funcionar orientados ao bem-estar geral e o  cuidado ambiental.

Não obstante, predomina no mundo uma fortíssima dinâmica concentradora da riqueza e o poder de decisão que considera a economia popular como um espaço a ignorar ou, em suma, atender muito tibiamente com programas assistencialistas desligados da marcha da economia. Sem respaldo político e sistemas de apoio, a economia popular e os movimentos sociais que fazem parte desse espaço sobrevivem impossibilitados de reverter as restrições que atormentam sua evolução.

Ao enfrentar duríssimas condições de escassez de capital (poupanças próprias ou de terceiros), de gestão comercial e tecnológica, com pouca informação de oportunidades e acesso a mercados, sem quase contatos com eventuais sócios estratégicos e com uma rudimentar organização para encarar atividades produtivas, os que participam da economia popular estão familiarizados com as causas que explicam sua situação, passo prévio para identificar soluções substantivas. Soluções que lhes permitam acessar a ciclos de reprodução ampliada sem perder valores de solidariedade para suas comunidades. Isto é, prover-se de respostas produtivas efetivas preservando atitudes alijadas da cobiça sem fim, o egoísmo de trabalhar sem considerar o impacto comunitário de sua ação.

Nesse contexto, um crítico fator a resolver faz a transição da muito pequena escala dos empreendimentos da economia popular para novas atividades produtivas e comerciais de tamanho médio ou grande.

Em outros artigos temos apresentado modalidades de apoio à economia popular a partir de uma perspectiva sistêmica. Em troca, nestas linhas analisamos como depreender opções de apoio a partir do caso de um projeto específico que acaba de ser anunciado: um investimento estrangeiro de tamanho médio favorecido com certos resguardos que reduzem riscos iniciais e reforçam sua viabilidade. A pregunta que guiará nossa análise é sim, com similares resguardos, uma iniciativa produtiva semelhante poderia ser assumida por algum segmento da economia popular.

O caso de referência[1]

Vale explicitar que não questionamos o anunciado investimento, já que desconhecemos aspectos muito relevantes sobre quem os conduz, sua motivação, honra, que atitudes assumirão diante da comunidade local. Isto é, não se trata de avaliar seu mérito, mas de extrair da forma como tem sido apresentada as lições que poderiam ser aproveitadas para favorecer a economia popular, por certo sempre e quando sejam trabalhadas apropriadamente.

O caso de referência é uma empresa polonesa que investe 7 milhões de euros em uma fábrica de luminárias LED[2] na província de Misiones, Argentina. A empresa tem presença em 70 países, dado não menor, mas sua produção é realizada em duas fábricas situadas na Polônia. A fábrica que se acaba de inaugurar em Misiones é a primeira fora de seu país de origem.

A nova empresa focará primeiro ao mercado das luminárias públicas: luzes para parques, ruas, estradas e outros espaços públicos. Logo somará iluminação para edifícios tais como escolas, hospitais, oficinas e bibliotecas.

A fábrica produzirá os módulos, a parte medular das luminárias LED onde vão os circuitos e montará outras partes como carcaças e vidros. Já se trabalha para integrar cada vez mais componentes locais no produto final.

A província de Misiones assegurou à firma polonesa duas ordens de compra a longo dos próximos anos por um total de 20,6 milhões de euros.

Possibilidade de empreender iniciativas semelhantes na economia popular

Vale considerar se esta modalidade de investimento é a única forma que existe para estabelecer em nossos países indústrias promissoras de tamanho médio ou se projetos parecidos poderiam ser promovidos para robustecer a economia popular; o caso das luminárias LED é apenas um exemplo. Vejamos.

O investimento que acaba de se radicar em Misiones deve ter apreciado vários fatores positivos para decidir sua localização. Seguramente uma localização de fácil acesso a três interessantes mercados: o próprio da Argentina, mais a proximidade com os do Brasil e Paraguai. Neles existem uma demanda ainda não atendida derivada da necessidade de transformar a atual dotação de lâmpadas convencionais. Deve ter incidido a disponibilidade de mão de obra local bem qualificada com baixos salários em dólares e a possibilidade de desenvolver provedores locais de certos insumos necessários como carcaças e vidros. Um crítico fator deve ter sido o acordo concretado com o governo da província do qual só conhecemos as duas ordens de compra por 20,6 milhões de euros, vendas certas que reduzem significativamente o risco comercial.

Se quiséssemos desenvolver este tipo de novos empreendimentos de tamanho médio no seio da economia popular deveríamos resolver, por um lado, como faríamos para materializá-lo e, por outro lado, demonstrar que esta modalidade serve melhor aos interesses do país.

Como materializar este eventual empreendimento da economia popular

Um empreendimento da economia popular de base associativa e tamanho médio terá que abordar várias questões, entre as principais, a estrutura de propriedade do empreendimento, a necessidade de contar com um capital inicial e logo o financiamento operacional, dispor de apropriada tecnologia e de uma efetiva capacidade de gestão, ter informação adequada sobre oportunidades comerciais e contar com uma estrutura comercializadora capaz de acessar aos mercados onde se apresentam essas oportunidades. São desafios importantes que deverão ser encarados e resolvidos. Eis aqui algumas possibilidades.

Em relação à estrutura de propriedade de empreendimento terá de ser definida de modo a preservar sua base associativa e assegurar a eficiência de gestão, incluindo modalidades de inclusão minoritária de eventuais investidores e, se for necessário, sócios estratégicos. Existe uma grande variedade de formas associativas para encarar processos produtivos, como as cooperativas, comercializadoras comunitárias, consórcios de produtores para se proverem insumos e serviços, empreendimentos de estoque, processamento e transporte, conglomerados (holdings) que integram diversos empreendimentos, agroindústrias locomotoras, franquias populares, supermercados comunitários, e outros já existentes ou se irão configurando com o devir dos tempos e as novas circunstâncias tecnológicas, econômicas ou políticas.

Em relação ao capital inicial e o financiamento operacional, se bem sejam cifras significativas para o universo da economia popular, não o são para conjuntos de aportantes comprometidos a respaldar iniciativas solidárias. Isto pode se resolver caso por caso, acudindo a aportes do setor público nacional, provincial e municipal, a recursos solidários de fundações e entidades laicas ou confessionais de desenvolvimento; também a contribuições não reembolsáveis de empresas privadas com responsabilidade social e ambiental. Por certo seria mais efetivo não ter que trabalhar caso por caso reunindo tal diversidade de aportantes mas contar com fideicomissos especializados em investir na economia popular e custear entidades financeiras que atendam a necessidades operacionais, aspecto de política pública que se detalha ao final deste artigo.

Em relação a dispor de apropriada tecnologia e capacidade de gestão, as mesmas existem nos países ou podem ser importadas. A tecnologia LED já é bem conhecida e aplicada em quase todos os países. O que não é simples é conduzir um empreendimento desse porte e natureza pelo que haverá de selecionar cuidadosamente quem o gestione, assisti-lo no que poderia necessitar, formar uma eficiente planta de trabalhadores e, em todos os casos, associar em alguma medida rendas a resultados de forma a alinhar corretamente os interesses de todos os participantes. Caso seja necessário contratar profissionais experimentados em gestão, tecnologias apropriadas, comercialização, logística e manejo de estoques, entre outros campos de especialização, resultará estratégico incluir quadros locais que trabalhem em equipe com eles de modo a promover para todos os níveis quadros próprios da economia popular.

Em relação à informação de oportunidades e o acesso a mercados é muito provável que tenha que estabelecer, quando menos inicialmente, muito bem definidos acordos de comercialização com sócios estratégicos que tenham experiência e estruturas para promover e sustentar vendas nos mercados não locais.

Cada desafio tem sua complexidade e nem sempre se encontra a experiência e o conhecimento necessário no interior da economia popular. Daí a importância estratégica de contar com desenvolvedoras destes empreendimentos de base associativa e tamanho médio para assistir em sua formação e funcionamento, questão que também se detalha mais adiante.

Porque esta iniciativa serve melhor aos interesses do país

Em princípio, os impactos positivos de encarar este tipo de projeto a partir do espaço da economia popular seriam significativamente superiores à opção de encará-lo como investimento estrangeiro. Por um lado, implicaria mobilizar capital para uma boa oportunidade de investimento no interior do país. Serviria para desenvolver empreendimentos médios na economia popular com o que contribuiria para uma mais efetiva e sustentável inclusão produtiva de importantes segmentos populacionais hoje desocupados ou subocupados em atividades de sobrevivência. Por sua origem e natureza, estes empreendimentos da economia popular asseguram que a maior parte de, senão todos, os efeitos multiplicadores que geram (em particular subcontratações) fiquem no interior do país. Não se incorreria em um fluxo permanente de dividendos ao exterior, uma variável da maior importância em economias com recorrentes estrangulamentos do setor externo. Permitiria conhecer e acessar a novos mercados externos abrindo perspectivas para promover outras eventuais exportações. Orientaria parte do desenvolvimento científico e tecnológico para uma trama produtiva centrada em média produção nacional. Desenvolveria unidades produtivas responsáveis estreitamente ligadas a suas comunidades e territórios com o poder de decisão assentado no país em lugar de em casas matrizes internacionais cujas decisões se adotam em função da maximização da rentabilidade do conjunto corporativo e não necessariamente dos interesses dos países onde radicam seus investimentos.

A partir dessa perspectiva, a economia popular iria transitando por uma trilha mais promissora para seu desenvolvimento como crítico setor da economia do país.

Retornando à perspectiva sistêmica

O exemplo utilizado nestas linhas não faz outra coisa que somar argumentos em apoio aos que trabalham arduamente com as organizações da economia popular. Não há dúvida que existe uma variedade de opções para desenvolver a economia popular de forma sustentável cuidando de preservar seus valores e base associativa. O que está faltando é um sistema de apoio ad hoc que permita identificar boas oportunidades e assistir na estruturação e o funcionamento dos novos empreendimentos de porte médio.

O desafio passa por prover de instrumentos apropriados que seja aceitos, e eventualmente adaptados, pelas organizações que operam nesse heterogêneo universo populacional. Isto é, que esses instrumentos resultem de real utilidade para as comunidades da economia popular acolhendo a diversidade de circunstâncias culturais e econômicas que coexistem em seu seio.

Com essa advertência, destacamos dois instrumentos de apoio que, em nossa experiência, poderiam resultar significativos.

Desenvolvedoras de empreendimentos de economia popular

Estas desenvolvedoras deveriam operar sob a liderança das organizações da economia popular como instrumentos para apoiar o robustecimento dos empreendimentos existentes e assistir na criação de outros novos de maior escala baseados na associação de esforços. Cabe a cada organização definir se considera útil contar com uma desenvolvedora, qual seria seu perfil, seu alcance e forma de funcionar.

Os empreendimentos de porte médio facilitam o acesso a uma progressiva capitalização que, por sua vez, incide sobre uma melhor gestão e permite ingressar a mercados mais promissores. Estamos falando de excelência de gestão, de tecnologias apropriadas, de reter o valor gerado para aplicá-lo aos fins decididos por quem integra o empreendimento. Tudo isto custodiando valores de solidariedade, respeito pelo outro, pelas comunidades nas que vivem e com as quais se relacionam, pelo cuidado ambiental e uma responsável participação na marcha local e nacional.

Fideicomissos especializados na economia popular

Um necessário complemento das desenvolvedoras de empreendimentos populares é contar com recursos para financiar a partida e a operação desses empreendimentos. Uma modalidade, entre outras, que poderia servir a este propósito é a formação de fideicomissos especializados em financiar a economia popular. Suas funções incluiriam uma linha de investimento no capital dos novos empreendimentos e outra de destinar recursos a entidades que proveem créditos à economia popular.

Estes fideicomissos podem se capitalizar através de uma diversidade de fontes de financiamento dependendo das circunstâncias que prevaleçam no país e nos territórios. O importante é que primem fontes não comerciais já que o critério para destinar seus recursos não se reduz a maximizar seu resultado financeiro mas robustecer a economia popular. Isto não implica colocar os recursos a fundo perdido porque é necessário lograr modestas recuperações que assegurem a sustentabilidade e contínua operação dos fideicomissos.

A capitalização dos fideicomissos pode provir de aportes públicos nacionais e locais, aportes solidários de fundações e empresas, respaldos externos comprometidos com a equidade e a sustentabilidade e, por certo, os próprios resultados operativos. É importante que em nível de direção dos fideicomissos participem também representantes das organizações da economia popular.

Fechamos estas linhas contestando as perguntas apresentadas no começo. Pode-se efetivamente encarar a passagem de uma escala muito pequena dos empreendimentos da economia popular a outra de porte mediano. E sim, para consegui-lo, se requer apoios (os aqui sugeridos ou outros diferente) como sempre acontece em toda extensão de qualquer sistema econômico que funcione com equidade, efetividade e harmonia social.

 

[1] Martín Boerr, nota publicada em La Nación, em sua edição de 31 de outubro de 2018.

[2] As lâmpadas de LED consomem 60% menos de energia que as convencionais.

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