Como se hipoteca o futuro, segundo o Réquiem Alemão

A Alemanha, país-chave da Europa, teima em manter políticas negativas e tecnocráticas diante de uma crise que já deixou de ser econômica para se tornar uma catástrofe social e política. É necessário um grande giro para evitar a paulatina ou repentina desintegração do continente.

Ao final de seu segundo septênio na presidência da França, François Mitterand se despediu com palavras algo similares às de seu predecessor monárquico, Luís XV. Não disse, como aquele rei “Après moi, le déluge” (“Depois de mim, o dilúvio”), mas se atreveu a dizer, “Après moi il n’y aura plus que des financiers et des comptables” (“Depois de mim, só haverá financistas e contadores). Como artífice, junto a Helmut Kohl, do euro e da consolidação da União Europeia, Mitterand era consciente dos perigos que poderiam espreitar a União. Na ausência de coragem estadista, de vontade solidária e de lucidez geopolítica, a associação de povos e Estados europeus caía nas mãos de banqueiros, contadores e tecnocratas. Com esses exímios redatores de regras (a maior parte, negativas) cuja principal visão do risco é a execução de um vencimento de pagamentos, o grande projeto de uma Europa forte no mundo, farol de civilização, de um alto nível de vida e vibrante mercado, se desintegraria paulatinamente. Em seu lugar, ficaria um conjunto desalinhavado de nações díspares, com políticas diversas e um só e triste comum denominador: a pusilanimidade.

Tal destino não interessa aos Estados Unidos de Obama, mas interessa à Federação Russa de Vladimir Putin, e talvez, também, como é velha tradição, a certas elites da Inglaterra. E deixa sem cuidado a quase todos os demais atores no tabuleiro geopolítico mundial, que se aproveitariam da situação com mordiscos oportunistas. Se esse cenário se cumprisse, ficaria um só país mais forte e ordenado no conjunto europeu: a Alemanha. Mas esta potência europeia haveria, então, perdido a oportunidade de liderar – com visão de futuro e concessões solidárias e seus sócios atrasados – uma Europa mais otimista e esperançosa. Para a Alemanha, esta é e tem sido a melhor opção. Se não se dá conta e desperta a tempo, ficará presa no seguinte dilema: será uma nação demasiado grande para a Europa mas demasiado pequena para o mundo. O velho continente seria testemunha de um segundo Réquiem Alemão, com a Alemanha sujeita aos vai-vens de três potências que a disputariam: os Estados Unidos, a Rússia e a China.

Por que abdica a Alemanha – junto à maioria dos governos europeus – de uma liderança digna de seu grande destino? Causas, as há distantes e outras mais próximas. Nos séculos XVIII e XIX, a nação alemã (todavia não unificada), não participou de nenhuma revolução democrática exitosa, mas se somou a todas as contrarrevoluções. Quando se unificou sob a férula prussiana, industrializou-se e se modernizou de cima a baixo, e de modo fortemente autoritário. “Gegen Demokraten helfen nur Soldaten” (em tradução livre: “Só soldados ajudam a enfrentar as forças democráticas”), é um aforismo alemão que o rei da Prússia gostava de citar e formulado originalmente pelo escritor Wilhelm von Merckel contra os liberais de Frankfurt em 1848.

No século XX, primeiro o autoritarismo e logo o totalitarismo alemães dominaram o continente europeu, produziram o Holocausto com o nazismo e afundaram o mundo em duas guerras que cobraram cem milhões de mortos. No pós-guerra, a Alemanha foi ocupada e dividida em dois sistemas, e obrigada a se incorporar a eles. Desde 1989, uma nova Alemanha unificada se transformou na economia mais forte da Europa, levou a cabo reformas neoliberais, e se somou à França como sócio político principal no projeto da União Europeia. Com a celebrada vontade de deixar definitivamente atrás o sombrio legado do autoritarismo e militarismo manifestou- se a compreensível reticência alemã em assumir uma liderança política e cultural à altura de seu novo poderio econômico. A nova Alemanha preferiu ser uma grande Suíça em algum rincão perdido do mundo.

Em matéria de segurança, a Alemanha se abrigou sob o manto militar norteamericano dentro da OTAN e, em matéria de liderança geopolítica, se deixou dirigir pelos Estados Unidos, que havia estado a cargo do Ocidente na Guerra Fria. Ao finalizar esta última, e já avançando o projeto de união comercial e monetária europeia, a Alemanha ficou à frente do continente em uma posição para a qual não se havia preparado e que lhe resultava incômoda. Escolheu o compromisso e a dissimulação e se beneficiou deles até que explodiu a crise mundial do capitalismo em 2008.

A Alemanha foi credora principal de outros países europeus em uma década de expansão e especulação financeira. Beneficiou-se, assim, de um mercado europeu para as exportações alemãs mas lubrificado por uma dívida de outros, a olhos vista, insustentável. A Europa foi o novo e fraco Lebensraum econômico alemão. Quando no cassino financeiro do capitalismo tardio chegou o inevitável “não vai mais”, a Alemanha teimou, de forma dura e sistemática, em uma dupla política: salvar seus bancos credores e impor a austeridade aos povos dos países endividados. Hoje, o motete alemão seria “Gegen Demokraten helfen nur Technokraten” (“Contra os democratas, só servem os tecnocratas”).

A “liderança” alemã passou de especulativa a repressiva, e o euro – expressão monetária da União Europeia – transformou-se de um lubrificante de expansão em uma camisa de força para países como Espanha, Grécia e Portugal, nos quais a prosperidade artificial havia dissimulado a falta de reformas e de um modelo mais viável de desenvolvimento. Como principal gestor da nova austeridade, a Alemanha se escudou detrás de organismos multilaterais e da burocracia de Bruxelas, enquanto se difundia pelo continente uma crise que de econômica passou a ser social e, finalmente, política.

Diante desta crise profunda, que se desenvolveu primeiro nos países da periferia europeia e logo chegou até Itália e França, a resposta alemã foi, em matéria econômica, pró-cíclica e contraproducente; em matéria social, regressiva e alienável de vastos valores da população; e, no político, polarizante entre partidos de esquerda e de direita. O veredito histórico hoje parece duro: a Europa tem à sua frente um país forte, reativo e negativo que, por trás de uma solução econômica utópica e limitada, a está levando a uma crise social e política a qual, por sua vez, e à falta de uma visão ampla e positiva, conduz a experimentos xenófobos, nacionalistas e extremistas.

A encruzilhada da Europa vai muito além da dívida grega. Eu a desenvolverei em notas futuras. Como antecipou o resumo, apresentou duas fotografias e duas citações de autores que me parecem apropriadas: uma do século XIX e que se aplica a um sisudo funcionário alemão, e a outra, argentina, do século XX, que se aplica a um hábil político grego.

Wolfgang Schaeuble, Ministro das Finanças alemão, advogado, especialista em impostos.

“Gegen Demokraten helfen nur Technokraten”

Yanis Varoufakis. Ministro das Finanças grego. Economista, especialista em teoria dos jogos, se autodefine como um marxista ocasional.

“Los dirigentes a la cabeza del pueblo o el pueblo con la cabeza de los dirigentes.” “Os dirigentes à cabeça do povo, ou então o povo com a cabeça dos dirigentes”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *