A crise internacional que estamos atravessando manifesta graves falhas sistêmicas na forma de funcionamento dos países centrais. É o coração do sistema global que está falhando e que procura proteção para não ser arrasado pelas mesmas forças que ele ajudou a desatar. O acontecido aparece como um tsunami financeiro criado, não pela natureza, mas pela forma em que decidimos nos organizar e funcionar. No entanto, não podemos nos enganar: há outras causas estruturais, além das financeiras. Hoje, o desafio consiste em conseguir que as medidas de emergência facilitem o início de mudanças fundamentais; recompor o funcionamento sistêmico tal como este era antes de entrar em curto-circuito e despencar seria a pior das opções. A crise internacional que estamos atravessando manifesta graves falhas sistêmicas na forma de funcionamento dos países centrais. É o coração do sistema global que está falhando e que procura proteção para não ser arrasado pelas mesmas forças que ele ajudou a desatar. O acontecido aparece como um tsunami financeiro criado, não pela natureza, mas pela forma em que decidimos nos organizar e funcionar. No entanto, não podemos nos enganar: há outras causas estruturais, além das financeiras.
Necessitamos refletir e rever alguns conceitos, inclusive os mais consagrados; reconhecer a realidade dos processos em andamento e afastar-nos dos discursos dogmáticos. Está na hora de rever a fundo o “contrato global”, reconhecendo a lógica que o sustenta e os efeitos não previstos de seu funcionamento. Embora haja muito a ser transformado e ajustado, também existem ativos que vale a pena preservar; não adianta atirar-se e balançar de um para outro extremo do pêndulo.
Para entender plenamente os acontecimentos é preciso considerar as externalidades não desejadas do atual sistema econômico mundial; reconhecer como elas surgiram, procurar a maneira de abatê-las e evitar que possam se reproduzir. As externalidades não desejadas estão presentes na crise sistêmica e também na eventual transição para um melhor funcionamento sistêmico; elas vão condicionar os novos acordos necessários para redesenhar a arquitetura financeira e reorientar a economia real.
A dimensão financeira da crise
Há a impressão de que a crise é de origem financeira, e que se o sistema financeiro fosse reformado, ela recuaria até desaparecer. Trata-se de uma meia verdade. Com certeza, o sistema financeiro saiu fora das bordas, afastou-se perigosamente da economia real e acabou por assumir o papel de locomotiva e piloto da economia global. A movimentação de fluxos financeiros adquiriu uma magnitude fenomenal. Um simples clique do computador pode movimentar, em tempo real, mares inteiros de recursos de um para outro ponto do globo. Os agentes financeiros que a princípio mantinham um olho nos seus negócios financeiros e outro olho na economia real, depois voltaram os dois olhos, os ouvidos, o olfato e a intuição somente para a obtenção de resultados em jogadas financeiras cada vez mais complexas. Assim, os espaços financeiros foram se distanciando de seus pontos de ancoragem na economia real. A cobiça e o “facilismo”, o fato de ganhar esse milésimo que, multiplicado por milhares de milhões, resultou em fortunas instantâneas, acrescentaram-se aos fatores que hoje conduzem o processo ao abismo.
Os reguladores, por sua vez, não souberam ou não quiseram cumprir com sua função de exercerem o controle e agirem como alertas; reinou a crença de que o mercado era capaz de se auto-regular e de que se houvesse um transbordamento, originariam-se mecanismos corretivos a nível endógeno. Porém, o mercado transbordou e não surgiram mecanismos corretivos, afora os implementados pelas autoridades políticas e com altíssimos custos sistêmicos.
O desenfreamento do sistema financeiro virou uma das causas estruturais da crise, mas sua gênese e sua implosão estão ligadas a um outro aspecto estrutural crucial da forma em que os mercados funcionam: os generalizados processos de concentração da renda e da riqueza, tanto entre países quanto no interior de cada país.
Aquele esquecido processo de concentração da riqueza
a. Entre países
As gigantescas diferenças econômicas existentes entre os países originam todo tipo de antagonismos, conflitos que prejudicam aquelas nações que concorrem em desvantagem, imposições com base nas diferenças de poder, reações virulentas, repressão, castigos, movimentos demográficas não desejados, e uma homogeneização do pensamento com epicentro nos países centrais que limita nossa capacidade de apreciar as diferenças e empobrece as respostas.
O processo de concentração internacional da riqueza cria mercados sobre-saturados de consumo excessivo e mercados empobrecidos, com populações cujas necessidades básicas atingem baixos níveis de satisfação. No meio desses dois pólos, há países com diversos níveis de vida e de consumo. Quando no interior dos países centrais se produzem sérios estrangulamentos —decorrentes de uma oferta de produtos que não para de crescer e que depende, para suster esse crescimento, de uma demanda que não a acompanha porque ela está fortemente concentrada—, o funcionamento sistêmico braceja à procura de soluções conjunturais que lhe permitam manter intata sua estrutura. As soluções desse tipo, que facilitam o acesso ao consumo, mas não à renda (para isso seria preciso alterar o sistema de distribuição), requerem um sistema financeiro que empurre, quanto puder, os limites de viabilidade do processo de concentração; um sistema financeiro que atue como efêmero dique de contenção dos efeitos decorrentes do funcionamento sistêmico.
Enquanto isso acontece nos países centrais, algumas das grandes economias emergentes implantam ajustes estruturais que lhes permitem atingir vigorosas taxas de crescimento. Países como a China, a Índia, o Brasil e as dinâmicas economias do sudeste asiático ocupam posições globais predominantes, acumulando um grandes superávits comerciais e financeiros. Nessa conjuntura, as economias centrais, ao adiarem os ajustes sistêmicos que poderiam resolver seu desbalanceamento estrutural, correm o risco de não poderem conservar sua posição na liderança global e acabam por afetar, no curto ou no médio prazo, o resto dos países.
b. No interior dos países
No interior das economias emergentes, as desigualdades resultantes do processo de concentração se evidenciam na propagação da pobreza, em uma institucionalidade precária, em uma estrutura produtiva débil, em freqüentes estrangulamentos externos e na fragilidade do mercado interno, fatores que desestabilizam o funcionamento sistêmico e causam crises periódicas de caráter funcional e estrutural.
Tal como já assinalado, as economias centrais possuem mais recursos e podem conter, por algum tempo, os efeitos negativos da concentração econômica em sua própria economia; no entanto, se esse processo não virar, os efeitos vão achar, de qualquer jeito, uma maneira de se manifestar.
A lógica econômica faz com que, quando a produção aumenta de forma contínua e a riqueza se concentra, se produzam desajustamentos estruturais. A produção resultante da atividade produtiva é orientada, em parte, para a sustentação dos segmentos que se beneficiam com a concentração; mas, como essa demanda é insufiente para absorver o conjunto da oferta, ela também tenta encontrar mercados-alvo entre os segmentos desfavorecidos. A porção da oferta que está orientada para os consumidores afluentes não pode crescer senão através da promoção do consumo supérfluo; porém, a oferta orientada para o resto da população depende do estabelecimento de mecanismos que facilitem o consumo além de suas possibilidades econômicas. O sistema financeiro, que é uma parte essencial do sistema econômico, se desenvolve de acordo com essas circunstâncias e cresce impetuosamente com base nas “soluções” que ele contribui para esse funcionamento sistêmico de natureza concentradora: recicla recursos excedentários mediante aplicações financeiras e financia um consumo que não poderia se manifestar no mercado através de seus próprios recursos. É penoso, mas doutrinante, o fato de acompanhar os efeitos do processo de concentração, que se coam como lava através do sistema econômico até desembocarem, de maneira explosiva, numa crise sistêmica.
Uma perigosíssima combinação de fenômenos
O consumo supérfluo é uma das maneiras em que os segmentos afluentes aplicam os recursos que excedem à satisfação de suas necessidades básicas. Porém, não são apenas eles que caem nesse tipo de consumo; também participam os segmentos médios e baixos com acesso ao financiamento. Por meio da propaganda agressiva, o mercado procura constantemente ampliar os limites daquilo que os diferentes grupos sociais consideram necessidades básicas, criando, de maneira artificial, uma insatisfação quase permanente que vira consumo ao se misturar habilmente com questões complexas ligadas à ansiedade existencial. A enorme massa de consumo supérfluo causa efeitos sistêmicos perversos, já que sustenta um nível de produção que não condiz com o sistema de distribuição prevalecente (aquecimento financeiro por sobre-endividamento); além disso, conduz boa parte da estrutura produtiva para a produção de bens ou serviços supérfluos, estabelecendo uma estrutura subótima para o repasse de recursos e atraindo novos interessados em manter o processo de concentração.
Os recursos excedentários dos segmentos favorecidos pelo processo de concentração são aplicados em investimentos financeiros ou na economia real; essas aplicações, ao amadurecerem, intensificam a concentração. A aplicação de recursos segue critérios de rentabilidade e de risco; isto é: seja de maneira direta, seja através de intermediários financeiros, os segmentos favorecidos buscam aquelas aplicações que garantem a maior rentabilidade possível, dado um certo nível de risco aceitado. Esses critérios de rentabilidade e de risco não costumam estar associados a outros critérios relacionados com o impacto social e ambiental dos investimentos1, fato que demonstra que ainda não existe um mecanismo sistêmico capaz de garantir uma melhor utilização global da poupança disponível. Como cada opção para a aplicação de recursos concorre com outras, há uma briga pela captação desses recursos. Uma parte dessa briga é legítima e se baseia na capacidade dos agentes participantes de tirarem proveito das inovações e de serem mais eficientes do que seus concorrentes; mas uma outra parte é ilegítima e se baseia na capacidade dos agentes de (a) maximizarem o retorno do investimento com base em informações privilegiadas, em posições monopólicas e na possibilidade de lucrarem com a corrupção, as organizações criminosas, a exploração da força de trabalho, a destruição do meio ambiente, os conflitos bélicos, etc; e (b) de ocultarem os riscos e responsabilidades através de operações complexas e de redes de intermediação e derivação.
Como já foi apontado, o processo de concentração também abre uma lacuna entre a demanda efetiva dos segmentos médios e baixos da população, e a oferta de bens e serviços dirigida a eles. A forma mais apropriada, a nível sistêmico, de fechar essa lacuna estrutural é desmontar o processo de concentração e facilitar o desenvolvimento de uma demanda genuína sustentanda em seus próprios recursos. Quando isso não acontece, e o crescimento da estrutura produtiva exige a contrapartida de uma demanda que não consegue atingir uma taxa de crescimento similar, surgem condições para que o sistema financeiro tente ampliar essa demanda além de sua capacidade de pagamento. Entre esse ponto e o sobre-endividamento dos consumidores há somente um passo; a bolha de hipotecas subprime talvez seja o mais dramático, mas não o único, exemplo desse processo perverso.
Portanto, a conjunção de um processo estrutural de concentração da riqueza que se reforça a si próprio, com a decorrente expansão tanto do consumo supérfluo quanto do sobre-endividamento dos consumidores com média e baixa renda, além do fato de que há um segmento do sistema financeiro que, com sofisticada cobiça, sustenta articialmente a situação, ultrapassando os rígidos limites impostos por esse funcionamento caracterizado pela concentração, explicam a lógica que conduz à crise. Contudo, é verdade que as trajetórias específicas que levam à crise são mediatizadas pelas circunstâncias históricas e institucionais próprias de cada lugar.
A emergência e a saída da crise
Segundo uma expressão popular, quando a casa pega fogo, primeiro é preciso apagar o incêndio. Porém, essa alegoria é enganosa, já que indica que a única coisa a ser feira durante uma emergência é atacar o fogo destruidor da melhor forma possível; mais tarde, haverá tempo para descobrir a origem do fogo e reconstruir o que tiver que ser reconstruído. No entanto, acontece que quando o que fica estragado é um sistema, é preciso que as imprescindíveis medidas de emergência sejam apresentadas conjuntamente com rápidos ajustes no funcionamento desse sistema, para evitar, assim, a extinção de apenas um fogo e o surgimento de outros em lugares e momentos inesperados. Em outras palavras: as necessárias medidas de emergência devem carregar consigo o germe dos ajustes sistêmicos.
Acontece que não existe uma única maneira de fazer frente a uma emergência sistêmica; e a pior de todas seria aquela que permitisse recompor o funcionamento sistêmico tal como este era antes de entrar em curto-circuito e despencar. Em próximas edições da Opinión Sur tentaremos especificar algumas das características de uma saída da crise capaz de configurar um funcionamento sistêmico mais justo e eficaz.
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