O Direito serve para algo? Como surge? Quem o determina e incide para interpretar as normas? Sua crítica, contribuição e suas limitações. O Estado de Direito e a decisão coletiva de submeter-se às normas.A pergunta do título resulta pertinente, dado que vivemos em uma época que se caracteriza por duas tendências contrapostas. Por um lado, há uma explosão de regulações jurídicas devido a uma atividade hipertrofiada das autoridades normativas e, por outro lado, existe uma crescente desconfiança nos destinatários das normas com respeito às instituições que elas criam e da possibilidade que as leis modifiquem a realidade, sobretudo em benefício dos setores mais fracos da sociedade. Muitas vezes o sistema jurídico se vê como a forma que os governantes utilizam para cristalizar a situação social e evitar que se produzam reformas.
José Hernández, no poema que os argentinos temos como fundamental em nossa literatura, expressa magistralmente esta desconfiança, ao dizer: “A lei é teia de aranha / em minha ignorância o explico/ Não a tema o homem rico; / nunca a tema o que manda; / pois o bicho grande a rompe / mas ela só enreda os pequenos.” (La Vuelta de Martín Fierro, 1879).
Sem entrar em demasiadas sutilezas, basta constatar que, para a maior parte das pessoas, pode-se identificar o Direito como um sistema normativo. É o sistema que nos diz o que devemos ou não devemos fazer no âmbito social, com a peculiaridade de que, se não o obedecermos, aparecem consequências perniciosas para nós. Isto vale tanto para a obrigação de parar diante da luz vermelha do semáforo, como para a de pagar os impostos ou evitar assassinar nossos congêneres.
Cabe perguntar-se, então, se este conjunto de normas tem alguma utilidade instrínseca, além das regulações que o sistema realiza (há os que creem, por exemplo, que pagar os impostos é questionável, e melhor não falar dos partidários de diversas formas de homicídio).
Além da crítica fundamental resenhada, há outros questionamentos que se formulam com frequência. Por uma lado, diz-se que o Direito é uma questão de advogados, e já se sabe que estes velhacos e oportunistas tratam de complicar as coisas de modo a sair sempre ganhando sozinhos. Isto leva à configuração de uma linguagem esotérica diferente da comum, incompreensível para os leigos. Estaríamos melhor em uma sociedade sem Direito uma vez que, para apenas aplicar normas que se impõem pelo sentido comum, não faria falta desenvolver aparatos burocráticos como os tribunais e todas as instituições que florescem a seu redor.
Outra frequente impugnação é que a lei pode ter qualquer conteúdo, como o prova o fato de que dois juízes podem interpretar uma norma de modo totalmente diferente, coisa que, de fato, os advogados fazem o tempo todo já que em cada pleito as partes sustentam interpretações das normas incompatíveis entre si, alegando cada uma que tem a razão. Se o Direito é tão indeterminado, então, não tem sentido crer nas leis já que se acomodam a quem as interpreta. E isto se traduz em que o resultado de um pleito não depende de quem tem razão, mas de quem pôde contratar o melhor advogado, ou de até que ponto a opinião pública ou outros interesses possam influir nas decisões dos juízes. De outro lado, sustenta-se que os advogados carecem de justificação moral, dado que defendem os que lhes pagam sem se importar se seu defendido seja culpado.
Encaremos primeiro as críticas secundárias. Com respeito à falta de simplicidade do Direito, o sistema jurídico é uma articulação complexa de diferentes normas criadas por instituições que têm séculos de vida. Nos direitos que possuem como fonte fundamental a legislação, os quais recolhem à herança do Direito Romano, desenvolveu-se uma importante cultura jurídica. É certo que a linguagem advocatícia às vezes incorre em excessos, mas o mesmo ocorre com qualquer outra disciplina na complexa sociedade em que vivemos. Aqui há que distinguir o sistema normativo dos comentários ou precisões que se fazem acerca deste, o que habitualmente se chama de “Ciência do Direito” nos países de direito continental (há uma diferença para com os países da common law, de tradição anglo-saxã, nos quais o sistema se constrói principalmente a partir das decisões judiciais).
Certamente, as categorizações do jurídico normalmente se devem ao labor dos juristas. Não obstante, não há nada abstruso na ciência do direito. O Direito é, em boa parte, um sistema regido pelo sentido comum, dado que reflete valorações e concepções da sociedade.
Resulta difícil conceber uma sociedade sem Direito. Em toda sociedade complexa, como as desta época, faz falta que se regule o uso da força. A vingança privada, própria das sociedades primitivas, se substitui pela regulação da utilização da força, que fica nas mãos, modernamente, do Estado. O Estado assume o monopólio do uso da força e sua regulação é o Direito.
O Direito vem, então, para contribuir com a paz social, dado que se encarrega de regular o uso da força. Neste aspecto, o que importa é que introduz uma forma racional de resolver os conflitos sociais. Diante de uma possível forma de solucionar conflitos sociais por meio da violência, o Direito resulta, por antonomásia, na forma racional de encará-los.
Porém, um sistema normativo não se pode administrar por si mesmo. As normas são enunciados gerais que, para serem aplicadas a um caso concreto, requerem a decisão de reconhecer neste caso as propriedades enunciadas genericamente. Se a norma castiga o ato de matar, há que reconhecer como este ato o que A fez a B em uma data determinada. Ainda que pareça fácil, basta pensar um pouco nos conceitos envolvidos para dar-se conta de que não o é. O que quer dizer matar? Uma definição comum seria “privar da vida”. E, então, quando é que alguém perde a vida? Basta dizer que não há acordo quanto a isso (pode ser quando não há atividade cerebral, quando o coração deixa de bombear sangue por um tempo, etc.). É óbvio que se A é acusado de matar B, A se defenderá dizendo que não o fez e que sua conduta não é a descrita na norma. Quem o acusa terá opinião contrária.
Tudo isto leva a que falta alguém que diga de forma autoritativa se o caso individual é abarcado pela norma. É preciso um terceiro imparcial, alheio ao pleito, isto é, um juiz.
De certo, diferentes juízes podem ditar sentenças distintas, interpretando a lei de forma distinta. O Direito deixa uma margem à interpretação, margem que surge da impossibilidade do legislador de prever todos os casos e das indeterminações linguísticas, assim como da – às vezes – questionável construção do sistema. Mas isto não significa que todas as soluções jurídicas sejam incertas. Não há discrepâncias em todos os casos, só nos que se chamam “casos difíceis”. Do contrário, as normas não serviriam em absoluto como guia de conduta.
A existência de divergências entre juristas gera um efeito secundário lamentável: qualquer um se sente autorizado a opinar acerca de um caso jurídico. Os que se dedicam profissionalmente ao Direito sabem que é quase impossível adiantar uma opinião acerca de um caso sem conhecer seus detalhes. Não obstante, encontramo-nos com “opinólogos” de toda laia que predicam frente a um microfone ou uma câmera que a decisão de um tribunal foi errada, ou a aplaudem, segundo simpatias políticas ou circunstanciais.
Por último, também se pode julgar severamente a conduta dos advogados, esquecendo que são auxiliares da parte, e não juízes. Se os letrados se manejassem eticamente, em um julgado destacariam pontos que pudessem favorecer sua parte e minimizariam os contrários. A tarefa de dar a justiça corresponde aos juízes. Tampouco se pode criticar a eleição de seus clientes, salvo dizendo que, como profissional, um não defenderia determinados casos. Mas é contraditório sustentar que em um sistema jurídico rege a presunção de inocência e a livre apreciação da prova e, ao mesmo tempo, negar a alguns a possibilidade de serem defendidos por um letrado. É certo que há melhores e piores letrados, e os que têm poder econômico contam com a possibilidade de uma melhor defesa, mas as desigualdades se corrigem com um bom sistema de defesa pública e, fundamentalmente, com bons juízes a quem não se lhes escapará este detalhe.
De todo modo, os pleitos sempre foram incertos. Uma antiga inscrição em dialeto veneziano encontrada em um edifício do ano 1615 diz: “Fabbisogno per intrapender lite/casa da banchier/ gamba da cervier/ pazienzia da romito/ aver razon/ saverla espor/ trovar chi líntenda/ e chi la voglia dar/ e debitor/ chi possa pagar”. Traduzido para nossa língua: “É necessário, para empreender pleito, caixa de banqueiro, perna de cervo, paciência de ermitão, ter razão, sabê-la expor, encontrar quem a entenda e quem queira defendê-la, e devedor que possa pagar.” Learned Hand, juiz norte-americano famoso por seu conhecimento do Direito, dizia que é preferível ter uma doença do que um pleito.
Voltemos, agora, à objeção inicial. O Direito é o encarregado de estabelecer as regras de jogo de um país, as mesmas que surgem do sistema social, político e econômico predominante. Em uma sociedade democrática, estas regras são igualitárias e se aplicam a todos os sujeitos, sem exceção. Tem havido, e há, regimes onde a democracia não impera ou o faz de forma imperfeita. Lá, o cumprimento das regras se faz depender dos que detenham o poder real que tenham maior capacidade de incidir sobre sua aplicação. Isso mesmo destaca a citação de Martin Fierro que a queixa não é contra o Direito, mas sim contra a forma de sua aplicação.
Em suma, o que cabe dizer é que o Direito possui uma virtude importante, que é a de expressar em normas quais são as condutas que se pretende daqueles aos quais se aplica. Neste sentido, estabelece as regras de jogo (que podem ser mais ou menos justas) às quais devem submeter-se os integrantes da sociedade. Neste sentido, o Direito é um grande avanço frente a decisões autocráticas. As constituições e os tribunais estabelecem limites conformando o que se deu a chamar “um Estado de Direito” que reflita uma decisão coletiva de submeter-se às normas.
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