No marco de uma crise ambiental sem precedentes, o governo chinês parece obrigado a optar entre o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente. Será que não tem outra alternativa?
Dos 560 milhões de pessoas que compõem a população urbana da China, apenas 1% pode respirar ar puro. Nesse país, aproximadamente 500 milhões de pessoas carecem de acesso à água potável, e os altos níveis de poluição do ar e da água têm contribuído para que o câncer seja uma das principais causas de morte.
Quase dois terços das necessidades energéticas chinesas são satisfeitos graças à extração e à queima de carvão, um dos recursos naturais mais abundantes no país, mesmo que um dos mais poluentes. Por causa da utilização intensiva desse mineral, no ano 2005 a China passou a ser o maior emissor mundial de dióxido de enxofre, uma substância tóxica que causa doenças respiratórias e cardiovasculares, e que provoca a chuva ácida na Coréia do Sul e no Japão.
Contudo, esse sombrio panorama ambiental é a contra-face de um crescimento vertiginoso, que apresenta uma taxa sustentada de dois dígitos e que tem transformado a China no maior produtor mundial de bens de consumo.
Enquanto a população urbana continua crescendo rapidamente, em virtude das migrações rurais, os efeitos positivos e negativos da mudança se sobrepõem. Milhões de pessoas saem da pobreza a cada ano e, ao mesmo tempo, as desigualdades sociais se agudizam e os recursos naturais, principalmente a água, tendem a esgotar-se ou poluir-se.
Será que não há outra alternativa? O governo chinês, como a maioria dos governos de países em processo de desenvolvimento industrial, parece obrigado a optar entre o progresso e a preservação do meio ambiente; entre pôr de lado a velocidade da decolagem econômica e social, e pôr de lado a saúde, a qualidade de vida e o meio ambiente.
“Primeiro, cresçamos”, foi o lema posto em prática faz trinta anos, a partir das reformas econômicas de Deng Xiaoping. Na verdade, os chineses argumentam, com razão, que esse foi o lema de todas as potências econômicas que alcançaram o desenvolvimento industrial entre os séculos XIX e XX. Nenhuma delas (nem os EUA, o Japão, ou os grandes países europeus), cresceu sem deixar um pesado lastro ambiental, que só foi levado em consideração muitos anos depois.
O problema é que o tamanho e o peso específico da China na economia e no meio ambiente mundiais fazem com que sua experiência não tenha precedentes. O impacto dela é gigantesco, e os tempos do planeta se tornam cada vez mais curtos. Talvez os chineses, que atingiram o desenvolvimento industrial mais tarde do que a Europa e os EUA, não possam desfrutar o privilégio de crescer primeiro e ocupar-se do meio ambiente depois. Pelo menos, parece difícil que possam continuar a fazê-lo por muito tempo.
No entanto, se bem que seja preciso reconhecer que as própias iniciativas ambientais do governo chinês demonstram sua preocupação e atenção com o problema ambiental, os resultados ainda parecem excessivamente magros em relação aos desafios.
Um problema com raízes muito antigas
É provável que nem toda a culpa seja dos chineses. Talvez o caso deles seja somente a manifestação culminante de um desajustamento muito mais amplo em nosso modelo de organização social. A forma em que a China tem procurado o desenvolvimento (com sucesso, em muitos aspectos), não é mais que sua própria versão da via inaugurada pelo Ocidente a partir da Revolução Industrial.
Nos últimos séculos, nossa civilização tem dado enormes passos na conquista da natureza, seguindo um método (científico, tenológico e econômico) que os asiáticos apenas adotaram e adequaram a sua própria idiossincrasia. É possível que a situação de emergência ambiental que a China sofre não seja só responsabilidade dos chineses.
O problema pareceria estar na própria definição empregada acima: por que falamos em “conquista da natureza”? Além de nossa atual obsessão pelo conceito ubíquo (e às vezes incerto) de sustentabilidade, a realidade é que nossa relação com o meio ambiente (com a natureza) tem sido, por séculos, uma relação de conquista, no sentido de dominação. A industrialização nunca incluiu as palavras “harmonioso” ou “sustentável” no seu dicionário.
O modo em que temos concebido a relação entre progresso econômico e meio ambiente é, inclusive, anterior à Revolução Industrial. Suas raízes são ainda mais profundas e estão ligadas, na minha opinião, ao modo em que o progresso científico se desenvolveu em Ocidente.
A partir da própria fundação do método científico, nós produzimos uma separação cortante entre razão e materia, entre a mente e o comportamento humano, e a natureza. Já nos albores da ciência moderna, consolidou-se um paradigma, uma visão do mundo segundo a qual, como dizia Francis Bacon, a natureza tinha de ser “escravizada” e “obrigada a prestar um serviço”. É isso que fizemos desde então, com grande sucesso, por certo. Submetimos e escravizamos a natureza, a obrigamos a prestar um serviço à humanidade. Porém, parece que chegou o momento de pagarmos, embora achemos que a conta é um pouco elevada. Temos atingido os limites de um paradigma que nasceu anos atrás e que nos serviu bem em muitos aspectos, mas cuja permanência hoje ameaça nossa própria existência.
Lamento repeti-lo, mas parece que a culpa não é só dos chineses.
Em todo caso, é possível que eles constituam o último grande episódio de industrialização acelerada “ao estilo Bacon”, a última aplicação de um sistema de crescimento que considera o meio ambiente como um mecanismo que deve ser obrigado a pagar um tributo. Tavez a China esteja encerrando uma etapa, talvez ela seja “o último industrialista”.
Contudo, tanto por necessidade quanto por convicção, a China deveria se transformar, aos poucos, na primeira experiência de um novo paradigma de desenvolvimento. Mas não um que negue o desenvolvimento industrial ou que adie, com resignação, a ascensão social de centenas de milhões de habitantes, senão um paradigma que incorpore, em seus próprios supostos básicos, em suas condições essenciais de funcionamento, o equilíbrio com o meio ambiente, uma questão até agora ausente nos processos de desenvolvimento.
É certo que, uma vez concluído o processo de desenvolvimento, o respeito ao meio ambiente é relativamente mais simples. Por isso, o desafio que enfrentam os chineses torna-se ainda maior: preservar o ambiente durante o processo de crescimento… e depressa. Pode não parecer simples, mas há muitas outras opções?