Há os que pensam que ordenar a economia implica reduzir ou postergar os objetivos de inclusão social. Acreditam, uns sinceramente, e outros defendendo interesses próprios, que é necessário por a casa em ordem (uma casa com demasiados privilégios e desigualdades) para, logo (um depois de penas e dores populares), ver melhorar condições de vida das maiorias. Nada disso; se de transformar se trata, não só é possível mas imprescindível fazer convergir o ordenamento da economia com o aprofundamento da inclusão social. Um exemplo para ilustrar esse desafio… Abordar essa questão exige, antes de tudo, explicitar o quê significa ordenar a economia e para quem se faz. É que há muito diversas concepções acerca da natureza e o propósito de por ordem em uma economia. Ordenamos o que está desordenado para restaurar uma situação perdida? Se for assim, estaríamos encarando um processo de restauração de um passado nostálgico. Ou estaríamos procurando ordenar de outra forma as variáveis econômicas para dar marcha a uma diferente dinâmica do que a preexistente? Nesse caso, estaríamos encarando um processo de transformação do rumo e da forma de funcionar de nossa sociedade.
Esse é um primeiro grande divisor de águas: ordenar a economia para retornar a uma dinâmica socioeconômica geradora de uma enorme concentração da riqueza, tremenda desigualdade e recorrente instabilidade sistêmica ou, em troca, ordenar as variáveis econômicas para transformar essa dinâmica.
A partir dessa última perspectiva, são muitos os aspectos e áreas da economia que necessitam ser reconsiderados. Não obstante, em um artigo curto é impossível abarcar essa totalidade, pelo que optamos por escolher um só âmbito da política econômica para utilizá-lo como exemplo do enfoque sugerido: o subconjunto de variáveis e relações econômicas, políticas, sociais e ambientais que fazem parte de uma política de rendas e gastos públicos. Outros críticos âmbitos que não são abordados nessas linhas incluem a aplicação da poupança que aflui em um país (atores, canais, destino do consumo, entesouramento, investimento produtivo, especulação, fuga ao exterior), as relações entre exportações e importações, os movimentos de capital, os formadores de expectativas, a estrutura de poder real, o sistema político e sua representatividade, os valores prevalecentes, entre muitas outras áreas que condicionam ou sobrecondicionam o funcionamento econômico.
Solvência fiscal
A solvência fiscal é uma dessas relações básicas da economia que é necessário assegurar; se não o fizermos, geram-se muito graves problemas no funcionamento econômico. Essa solvência deriva de uma relação que existe entre as rendas e os gastos públicos. Desequilíbrios entre ambos os subconjuntos de variáveis leva a um déficit ou a um superávit nas contas públicas. Mas o crítico passa pela forma como se nivelam rendas e gastos porque há muito diversas formas de obter as rendas públicas, assim como de aplicar o gasto público. Como se verá, as opções de rendas e de gastos utilizadas refletem no rumo escolhido e na forma de funcionar adotada para lograr os objetivos e assegurar a trajetória.
Com isso, destacamos que a solvência fiscal é uma condição de sustentabilidade do funcionamento econômico mas não é em si mesma um fetichismo a obter de qualquer forma: o determinante é como se o consegue, porque o tipo de renda obtida (impostos progressivos ou regressivos, endividamento para financiar investimento ou cobrir crescentes déficits operacionais) e a natureza dos gastos que essas rendas financiam consagrarão diferentes trilhas de crescimento: desde uma concentradora a outra de desenvolvimento sustentável e inclusivo, passando por híbridos intermédios. Em outras palavras, importa dispor de solvência fiscal, mas não qualquer tipo de solvência fiscal.
Rendas públicas que promovam sustentabilidade e inclusão
Em geral, a maior parte das rendas públicas provêm dos impostos estabelecidos e do endividamento contraído. Um sistema tributário regressivo (aquele que carrega relativamente mais os setores de rendas médias e baixa) atenta contra os objetivos de inclusão e promove a concentração da riqueza que impacta sobre a desigualdade, pobreza e instabilidade sistêmica.
Um endividamento volumoso e de natureza dispendiosa compromete a viabilidade de desenvolvimento nacional ao dar marcha a uma corrente de crescentes pagamentos sem gerar maior capacidade produtiva e de rendas públicas e privadas. Esses tipos de estrutura tributária e de endividamento público andam de mãos dadas: os setores de maiores rendas incidem de tal forma sobre a política econômica que travam as tentativas de estabelecer maior progressividade tributária e impõem um endividamento que facilita a materialização e eventual fuga de seus lucros especulativos.
Ao contrário, uma política de ordenamento fiscal compatível com o aprofundamento da inclusão social se conseguiria substituindo cada vez mais o que se arrecada com impostos que tributam renda e consumos populares por impostos que tributam os lucros, o patrimônio e as transações financeiras especulativas. Ao mesmo tempo, impõem-se abater a tremenda evasão tributária dos setores de maiores recursos que utilizam uma diversidade de mecanismos como as triangulações comerciais realizadas através de jurisdições pouco reguladas ou de guaridas fiscais [[Ver [“Diferenciar geração, distribuição e apropriação de valor”->http://opinionsur.org.ar/Diferenciar-generacion].]], certas associações ilícitas para camuflar ganhos [[Ver um [caso recente de associação ilícita para comercializar cereais em->http://www.pagina12.com.ar/diario/economia/2-240406-2014-02-23.html].]] , contabilidades “criativas” para enganar o fisco, entre muitos outros. De igual modo, cabe transformar o nível e a natureza dos endividamentos contraídos.
Vale dizer, se se requerem maiores rendas e falamos de solvência fiscal consistente com o objetivo de inclusão social, as medidas a tomar seriam (i) transformar a estrutura tributária para outra muito mais progressiva; (ii) eliminar o mecanismo de evasão tributária, em particular, dos grupos concentrados; (iii) endividar-se com prudência sem comprometer o desenvolver nacional; e (iv) orientar o endividamento a financiar fundamentalmente obras e serviços de infraestrutura social e produtiva.
Gasto público que promova sustentabilidade e inclusão
A outra grande variável que afeta a solvência fiscal é o gasto público. Sua importância vai muito mais além da pura solvência fiscal porque o gasto público influi de maneira decisiva sobre o rumo e a forma de funcionar dos países. Assim, enquanto que o nível dos gastos públicos em relação às rendas públicas define o grau de solvência fiscal, a natureza do gasto, sua composição, é uma variável crítica em termo de inclusão social e sustentabilidade de desenvolvimento.
O gasto público é uma poderosa ferramenta para impulsionar a demanda interna já que soma suas compras e investimentos às realizadas pelos privados. Como ocorre com quase tudo em economia, o momento, a oportunidade em que se aplica uma medida é determinante para alcançar os objetivos perseguidos. Assim, impulsionar a demanda interna é conveniente em alguns casos e menos em outros: depende se existirem ou não fatores produtivos ociosos que a demanda privada não tivesse sido capaz de mobilizar. No caso de existirem fatores ociosos, o gasto público cumpre o papel de dinamizar a economia, sem causar maiores efeitos secundários não desejados. Em troca, se estivesse em uma situação muito próxima à plena ocupação dos fatores produtivos do país, o gasto público necessitaria alentar fortemente o investimento (público e privado) para evitar que um incremente de demanda não fosse acompanhado por uma maior oferta dando lugar a um aumento de tensões inflacionárias.
Isto é ainda mais complexo se considerarmos a matriz produtiva nacional. Há setores onde existem sérias situações oligopólicas que facilitam permanentes abusos de poder de mercado para se apropriar do valor gerado por outros [[Ver [“Abusos de poder de mercado”->http://opinionsur.org.ar/Abusos-de-poder-de-mercado].]]. Nesse contexto, uma maior demanda induzida por um maior gasto público orientado, por exemplo, a subsidiar o consumo popular, permitiria aos que detêm posições dominantes maximizar taxas de juros via preços sem necessidade de ampliar sua oferta; eles são os principais formadores de preços em seus respectivos setores. Daí que importa, e muito, que quando se aumenta o gasto público orientado a subsidiar o consumo seja acompanhado por outras medidas que permitam impedir os abusos de poder de mercado; haverá que assegurar que a oferta produtiva acompanhe o crescimento da demanda e que a intermediação comercial não termine prejudicando tanto aos produtores quanto aos consumidores [[Um aspecto não menor é quem, definitivamente, consegue se apropriar de maior proporção de valor que não geraram. Em alguns casos, são os próprios produtores de um determinado produto, ainda quando, com maior frequência, costumam ser os que detêm posições dominantes na cadeia de comercialização.]].
De outro lado, haverá que considerar o componente importado dos setores que se beneficiem com um eventual aumento do gasto público para assegurar que exista disponibilidade de divisas. Se estivesse em uma situação de severa escassez de divisas, haveria que adotar medidas para dirigir o incremento do gasto para atividades e atores com menores componentes importados.
Em síntese, se bem os níveis de gasto público podem chegar a afetar a solvência fiscal, por em ordem a economia do setor público não implica rubricas que incidem sobre a inclusão social, mas trabalhar forte para melhorar a produtividade socioeconômica do gasto público; isto é, redobrar a efetividade da aplicação do gasto. São muitos os casos de esbanjamento por má aplicação do gasto público que necessitam ser corrigidos, além de eventuais ineficiências no próprio gasto social. Assim, por exemplo, em lugar de cortar subsídios ao consumo popular corresponde eliminar os subsídios recebidos por setores afluentes ou que não necessitam deles; e isso se pode lograr estabelecendo tarifas diferenciais (energia, combustíveis, entre outras) assim como contribuições de melhorias realistas para financiar obras de infraestrutura que sirvam a setores afluentes e que hoje se financiam total ou parcialmente com rubricas orçamentárias.
Conclusão: solvência fiscal que promova sustentabilidade e inclusão
Do anterior, surge que a solvência fiscal é o resultante de diversas combinações de rendas e gastos públicos; de nenhum modo de uma única possível combinação. Existem diferentes opções para arrecadar renda e para configurar a composição e produtividade socioeconômica do gasto público, cada uma com diferentes impactos quanto à sustentabilidade e inclusão social. É a esse nível de desagregação das rendas e dos gastos públicos que é necessário trabalhar se se deseja conciliar o econômico e o social.
As medidas sugeridas para o exemplo de rendas e gastos públicos são justamente do tipo que possibilitam ordenar a economia aprofundando a inclusão social; enfoques semelhantes para outras áreas críticas do sistema econômico são igualmente necessários. Em troca, quando se acode a medidas que propõem ordenar a economia sem afetar privilégios, sem transformar a dinâmica concentradora, aí sim é que se torna incompatível o tipo de ordenamento econômico proposto com a sustentabilidade e a inclusão social.
Toda transformação suscita resistências dos que não estão dispostos a ceder posições. Nesse crítico âmbito de transformar e tornar mais efetiva a ação pública e sua política econômica, essas resistências se multiplicam pelo que é fundamental trabalhar para lograr um forte apoio político e um permanente esclarecimento da opinião pública. As forças que buscam preservar a ordem estabelecida são sempre poderosas uma vez que a seu poder econômico somam a cumplicidade de certos setores da política, a mídia e a justiça dos quais são adeptos. Vale recordar que o rumo de um país e sua forma de funcionar emergem da correlação de forças prevalecente e é no seio dessas tensões, cheias de interesses, necessidades e emoções, onde as diferentes opções de política econômicas adquirem sua verdadeira significação.