Transcorridos os dois primeiros meses do ano 2012, resulta relevante fazer uma reflexão em torno do desempenho da economia global e adiantar algumas predições para o ano em curso. Nos Estados Unidos, corrigiu-se para cima o crescimento do produto do quarto trimestre de 2011: 3% e a taxa de desemprego se estabilizou. Existem alguns elementos referidos ao mercado de habitações, a produção manufatureira e o índice de confiança do consumidor que confirmam que uma tênue recuperação se consolida. O setor de serviços, que representa mais de três quartas partes da economia norteamericana cresceu em fevereiro e acumula 26 meses consecutivos de expansão. Considero que a medida em que avance a possibilidade de reeleição de Obama, a recuperação se acelerará no segundo semestre, se a crise europeia e o conflito bélico com o Irã se mantiverem contidos. A China acaba de oficializar que sua taxa de crescimento do produto para 2012 será de 7,5%. o dia posterior ao deste anúncio, caíram os mercados de todo o mundo, o que nos confirma o papel de “motor” desempenhado pela China para a economia global em crise.
Na Europa, a avaliação adquire uma natureza diferente. Nestes 60 dias, a Europa foi o centro da atenção mundial e as mudanças têm acontecido vertiginosamente. O que ali aconteça é determinante para o desempenho da economia global, ao menos no presente ano. O temor de um colapso do Euro e a desintegração da União Europeia tem dominado o comportamento dos investidores, analistas e líderes políticos. Se ocorresse, o nível de contágio teria a força de uma grande tsunami, cuja onda chegaria a todas as costas do planeta. Ao início do ano, esse cenário tinha uma grande probabilidade de ocorrência: a crise da dívida da maioria dos países e as colocações de títulos soberanos emitidos por Itália e Espanha beiravam o perigoso umbral dos 7% anuais. O pânico dominava o mercado de capitais e se estendia para ações e moedas. Como resultado, o “horror” começou a exercer seus efeitos sobre os líderes políticos europeus, fundamentalmente sobre as dirigências alemã e francesa, países aos quais pertencem a maioria dos bancos inundados de títulos soberanos italianos, espanhóis, portugueses, gregos e irlandeses, entre outros.
Como consequência, a partir da segunda quinzena de janeiro, desataram uma série de acontecimentos que delinearam um cenário no qual, se bem tenham diminuído os riscos do colapso, consolidou-se a hipótese de uma severa recessão durante o ano de 2012 para a União Europeia e a Zona do Euro. Esta mudança de cenário foi o resultado de um torvelinho de reuniões de autoridades comunitárias e cúpulas presidenciais, todas elas com o propósito de reformular a arquitetura institucional da UE, dotar a UE e a Zona do Euro de maior governança, redefinir o papel do Banco Central Europeu e gerar novos tratados para manter unificada a Zona do Euro e o destino de sua moeda única.
Toda esta intensíssima atividade teve como eixo uma postura ideológica dominante: “a teoria Merkozy do equilíbrio fiscal como precondição para o crescimento”. Ademais de uma obsessão estrutural, a crise tornou evidente que os países que compartilham o Euro não somente devem resignar sua política monetária, mas também devem resignar sua política fiscal.
Como corolário, na cimeira de quinta-feira, 1º de março, a teoria Merkozy logrou sua formalização em um tratado que consagra a austeridade fiscal e impõe aos países signatários a obrigação constitucional de manter o equilíbrio fiscal. Um total de 25 países, dos 27 da UE, assinaram o tratado que entrará em vigência na Zona do Euro com a ratificação do mesmo por um mínimo de 12 países. Recorrendo à mais pura teoria neoliberal, Merkel justificou o tratado declarando: “O primeiro que se há de fazer é: assinar o tratado para erradicar o desequilíbrio fiscal; o segundo é: como gerar crescimento”. Exatamente o contrário do que opinaria Keynes, e incluso estruturalistas pós-Keynesianos, como Paul Krugman, o que transforma a crise europeia em um terreno de disputa da teoria econômica: keynesianismo versus classicismo neoliberal. Ou a Europa entra em um círculo vicioso de mais ajuste, mais contração, mais déficit, ou em um círculo virtuoso , como assume Merkozy: menor déficit fiscal, maior confiança de investidores e consumidores e, por fim, maior crescimento. Merkel fundamenta sua posição naqueles analistas que apresentam que a Europa não transita por uma crise de dívida, mas por uma crise de confiança e, portanto, o que se há de restabelecer é a confiança dos investidores e os consumidores com fiscos sólidos e orçamentos equilibrados. Obviamente, nada disto, nem sequer para Merkel, ocorrerá durante 2012. A confiança, se esta fosse a tese adequada, é algo que se recupera em muitos anos. Os latinoamercanos conhecemos a extensão destes ciclos. Em consequência, a contração da atividade e do produto do presente ano já estão assumidos, inclusive na Alemanha, e especialmente nos países que tem aplicado maiores cortes orçamentários: Grécia, Portugal, Espanha e Itália. Já no último trimestre de 2011, produziu-se um crescimento negativo de 0,3% e se espera, na versão mais otimista, que este algarismo se repita a níveis similares em 2012. Tenhamos em conta que hoje cinco economias – Grécia, Portugal, Itália, Holanda e Bélgica – ingressaram em recessão técnica (dois trimestres com crescimento negativo).
Na cúpula de 1º de março, houve um segundo feito transcendente no persistente resgate do Euro. Ele se constituiu da decisão de adiantar a metade do empréstimo de 130 bilhões de euros à Grécia para respaldar a permuta de títulos e recapitalizar os bancos; nada para aliviar a crise orçamentária da sofrida Grécia. A permita se encerra na segunda semana de março; o Ministro Venizelos declarou que é otimista e que a participação superará 90%. Porém, a UE segue sendo precavida e postergou uns dias o desembolso da outra metade.
De todo modo, essa liberação parcial de fundos à Grécia, assim como o lançamento da maior permuta da História – uma retirada de 53,3% dos títulos em mãos de credores privados para apagar 107 bilhões de sua dívida de 350 bilhões – gerou um efeito muito positivo (se a permuta for exitosa) para a gestão da crise europeia. A Grécia deixou de ser o centro da agenda política e econômica, o que elevou a confiança dos investidores, mortificados há mais de dez anos pela incerteza gerada pela tragédia helênica.
Deslocada a Grécia do centro da agenda (por agora) e harmonizando a política monetária com a fiscal na Zona do Euro, ressurge com maior nitidez a dimensão da crise financeira e seu impacto sobre a disponibilidade de crédito para empresas e famílias e, por fim, sobre o consumo e, em definitivo, sobre o cada vez mais longínquo “sonho do crescimento”. E é aqui onde o centro da discussão se traslada ao papel do Banco Central Europeu (BCE). Deve o BCE intervir na compra direto de títulos soberanos? Deve ser mais agressivo no mercado secundário? Deve ser mais incisivo em seu papel de “bombeiro” provendo mais liquidez ao sistema bancário? É urgente instrumentar os Eurobônus?
A urgência já precipitou o BCE a uma injeção de liquidez no sistema bancário de um milhar de milhões de euros. A realidade deu sua primeira resposta: os bancos se capitalizaram, mas não trasladaram nada dessa primeira chuva de liquidez ao crédito a empresas ou famílias. Dupla preocupação: os bancos não reativam seu negócio central e, por fim, incrementam sua fragilidade financeira, e a desconfiança, junto com o nível de risco que gera a incerteza sobre a evolução da economia da UE, impedem qe o “descongelamento” creditício faça andar o motor do crescimento. Cortes orçamentários, queda da atividade, desemprego crescente (10,7% na Zona do Euro, com um máximo de 23,3% na Espanha) e falta de crédito, formam um cenário desesperançoso. Diante disso, Merkel insiste que “o tratado de consolidação fiscal é um passo importante para uma união estável, torna possível uma união política”: novamente o tema crescimento segue ausente de sua agenda, quiçá porque, como insinua Christine Lagarde, “alguns países têm que avançar a toda velocidade para impulsionar o crescimento daqueles países restringidos em sua expansão pelo desequilíbrio”. Ainda que não tenha mencionado nenhum país em particular foi fácil supor que se referia à Alemanha, o motor do crescimento europeu. Cameron, mais lacônico, introduziu a nova dimensão: “ A Europa não só enfrenta uma crise de dívida, mas também uma crise de crescimento”.
O outro acontecimento que durante estes primeiro 60 dias do ano distancia a Alemanha de sua ortodoxia e inflexibilidade inicial, fundamentalmente pela pressão exercida sobre Merkel pelo G-20 e pelo FMI, foi a aceitação adotada em fins de fevereiro pela UE de unificar o Fundo de Estabilidade Financeira com o novo mecanismo de Estabilidade Financeira (MEDE), o Fundo de Resgate, elevando sua capacidade para 750 bilhões de euros, com o propósito de respaldar países nos quais se agudiza a crise econômica e o desemprego.
Em suma, os primeiros dois meses de 2012 giraram febrilmente em torno de uma Europa que optou por uma linha econômica que privilegia o ajuste para alcançar o equilíbrio fiscal. Evitou-se o colapso do euro, o que seria muito negativo para a economia global, mas dramático para o sistema financeiro europeu e para a Alemanha em particular, cujas exportações, motor de sua economia, concorrem com 50% do próprio mercado europeu.
Evitou-se cair no precipício, mas é indubitável que a saída adotada e imposta por Merkozy aos demais países da União tem um sério problema de sustentabilidade. Sustentabilidade política e sustentabilidade econômica. Difícil imaginar que as sociedades submetidas a tremendos sacrifícios em seus níveis de vida e altas taxas de desemprego não reajam ou se expressem eleitoralmente em alternativas políticas distintas às que hoje acordaram pela austeridade e pela recessão. A eleição presidencial na França no mês de maio é o primeiro desafio. O que acontecerá se o candidato socialista (François Hollande) for eleito presidente? (já expressou abertamente sua negativa ao texto do tratado aprovado na cúpula daquela quinta-feira).
A sustentabilidade econômica é também questionável. A pergunta que hoje vários economistas se fazem é altamente relevante: o ajuste conduz a uma queda da atividade, o que por sua vez conduz a maior déficit fiscal, e pelos tratados de equilíbrio fiscal a ulteriores cortes orçamentários, e assim sucessivamente a novas quedas da atividade e do emprego. Não há, na visão de Merkozy uma proposta de crescimento, não está identificado o motor, o modelo, parece ser um “tapete tecido sem desenho”, uma saída do “horror” sem roteiro, sem estratégia.
O contágio na economia global já começa a mostrar seus primeiros sinais. Como dissemos, a China acaba de anunciar que seu crescimento em 2012 será de 7,5%. E, além de alguns desequilíbrios internos, relacionou a queda na taxa de crescimento de seu produto com a queda de suas exportações para Europa. Esse fenômeno pode ir avançando gradualmente no correr do ano. O vital para a economia global é que a recessão europeia não debilite a frágil recuperação nos Estados Unidos, cujo vaso comunicante seria setor financeiro mais que o comércio. As mostras do poder de fogo do BCE geram uma esperança neste sentido. Os países da América Latina sofrerão o duplo efeito da diminuição de suas exportações para a Europa com uma possível queda do preço de alguns alimentos (fundamentalmente a soja) pela queda da atividade na China.
Qual é nossa reflexão? Não pode uma economia estar dominada pelo ajuste, não é este um fim em si mesmo. Já o vivemos na América Latina e, quiçá, por isso aprendemos e somos, nas palavras de Izaguirre (Banco Mundial), um exemplo de política macropolítica e social. A Europa deve voltar a pensar no longo prazo, desenvolver uma visão de uma década, e essa visão é que deve unir os países da UE. O desequilíbrio fiscal é um instrumento e é razoável sua aplicação em casos extremos, mas o dominante deve ser a política e a visão de longo prazo, quiçá nessa visão Keynes ressucite de seu sepulcro e tenha um papel a interpretar.
Opinion Sur



