Apesar das aparências, o atual poder chinês é um amálgama dos modelos contraditórios. Cada um deles contém contradições internas, por sua vez. Se esta hipótese é certa, podemos duvidar da sustentabilidade desse poder a médio e longo prazo.
A presente constelação geopolítica se caracteriza por três constatações. A Europa ocidental se mostra indecisa; os Estados Unidos estão em aparente retirada; a pujança chinesa é supostamente imparável. Mas esta é só uma cara da panqueca. A outra cara aparece quando se dá volta na panqueca, que é o que se faz antes de servi-la. E isto acontece porque a história não é inexorável, mas cheia de surpresas. O futuro não se pode predizer com a certeza de uma ciência exata. Com isto em mente, dedico este artigo a uma superpotência em desenvolvimento, a poderosa potência chinesa.
Começo com uma parábola. É o relato de um acontecimento fictício que permite transmitir uma mensagem de conteúdo moral através de uma analogia, uma comparação ou uma semelhança.
De todos os contos curtos de Jorge Luis Borges, o mais breve se refere à China. Podemos reproduzi-lo inteiro.
_______________________________________________________________________
Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo, estes Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade entregaram-no às Inclemências do sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas[1].
FIM
________________________________________________________________________
Na longuíssima história chinesa, houve treze dinastias. Elas fundaram distintos impérios sucessivos. Igual à cronologia egípcia, com seus “reinos” entrelaçados com períodos intermediários, a China dinástica enfrentou vários desafios que levaram a períodos caóticos e de mudança de poder[i]. Os impérios foram de duração variável, desde o mais curto (15 anos) até o mais longo (600). Todos se desmoronaram.
Com uma só exceção que durou pouco, ninguém teve vocação de estender seu poder nos mares. Quando o fez, a China soube construir uma frota fenomenal que se lançou ao oceano sob o comando do famoso almirante Zheng He (1371 – 1433), que teria eclipsado sem dificuldade Cristóvão Colombo. Mas o Imperador, temeroso de perder sua base territorial de poder, a cancelou. A frota era uma iniciativa de prestígio mais que uma empresa comercial, mas podia se tornar um fator dispersivo e perigoso para o centro imperial.
Nestes impérios, o poder central controlou e estrangulou o desenvolvimento de uma burguesia comercial, diferente do Ocidente. Fê-lo através de estritos monopólios de estado (o do sal foi o mais visível). O Confucionismo foi sempre hostil a todo vislumbre de capitalismo. O centro sufocou todo intento de dispersão. Golpes de Estado e invasões inauguraram novos impérios, que reproduziram seus predecessores. E com o mesmo vaivém: às vezes a queda de um império deu lugar a cruentas guerras civis, antes de volver à folha zero.
Podemos caracterizar os cem anos do Partido Comunista Chinês (que hoje se celebram na República Popular com grande pompa e grande dissimulação de uma história mais caótica que a oficial) como o estabelecimento de outra dinastia, mas desta vez com características inovadoras e duas fases sucessivas. A primeira foi o estabelecimento da República Popular sob a férula de Mao Zedong. A segunda foi a renovação modernizadora sob os auspícios de Deng Xiaoping, cujo sucessor poderoso é hoje o presidente Xi Jinping.
A última fase combinou dois modelos de poder e desenvolvimento. O primeiro é o “centralismo democrático” estabelecido antes na Rússia pelos herdeiros de Lênin no que foi a União Soviética. O segundo é o capitalismo de Estado, no regime que seguiu ao de Mao. Esta combinação produziu um crescimento espetacular que deu como resultado uma economia hoje superior a todos e trouxe como consequência a projeção desse poder urbi et orbi, isto é, dizer em quase todo o planeta.
Grande paradoxo: ambos modelos não foram uma invenção chinesa, mas nasceram em pleno Ocidente, a saber: o capitalismo e o marxismo. A novidade chinesa foi sua combinação. Mas a combinação encerra, por sua vez, uma grande contradição. Explico-me.
O capitalismo, magistralmente narrado e analisado por Marx, é um sistema dinâmico (e contraditório em si mesmo) que tende a se expandir em busca insaciável de investimentos e mercados. Domina o entorno e muda a cultura transformando o mundo do trabalho e o mundo do consumo. É por natureza um processo centrífugo que altera quanto sistema social invade. De sua parte, o comunismo (herdeiro do marxismo) é um sistema centrípeto, que trata de organizar toda a sociedade a partir de um centro de poder e com um partido único que tudo dirige e controla em forma minuciosa. Tem suas próprias contradições internas, já que o controle total é uma utopia que levada a prática produz o resultado imaginado por Borges com seu mapa totalitário.
Transforma a cultura em disciplina, controle, e pensamento unitário. É uma expressão mais estendida e exagerada da tese de Michel Foucault em seu famoso livro Vigiar e Punir (Petrópolis: Editora Vozes, 42º edição, 2014). O controle é total e frágil ao mesmo (a direção chinesa tem medo de que se repita a estrepitosa queda do totalitarismo soviético. A tragédia da URSS alimenta sua paranoia)[ii].
Podemos resumir dizendo que o atual império chinês é uma amálgama dos dois modelos contraditórios e que cada um deles contém contradições internas, por sua vez. Se esta hipótese é certa, podemos duvidar de sua sustentabilidade a médio e longo prazo.
Em matéria geopolítica, o imperialismo chinês é distinto do neoliberalismo imperialista ocidental. Busca fundamentalmente transformar os outros sistemas só com base nas necessidades chinesas de administrações, e os desenvolve de forma simétrica transformando outros países em fornecedores modernizados de materiais estratégicos e mercados subsidiários, com bases portuárias e militares estratégicas para garantir essas administrações[iii]. É a chamada Iniciativa do Cinturão e da Rota. Não proselitiza (tem escassa projeção cultural nos países do Ocidente e nos islâmicos também) mas estabelece infraestruturas de uma nova dependência[iv]. Podemos caracterizá-lo como um império tributário[v].
Em última instância, a viabilidade do império tributário depende da resolução de sua contradição interna entre centralismo e dispersão. Vista a partir da mais ampla perspectiva histórica de vários milhares de anos no que foi o Império Celestial, a oscilação entre esses dois polos é a nova versão o sempiterno ciclo imperial chinês, mas desta vez, potencializado e acelerado pelos esteroides tecnológicos e econômicos do século XXI. O centro exagera seu controle, mas ao mesmo tempo, estimula e acelera um desenvolvimento capitalista que o leva a eventual destruição.
Concluo com outra analogia. Para os que gostam de automóveis avançados, a dinâmica chinesa se assemelha ao desempenho de uma veloz Ferrari – mas sem os freios.
Se você achou interessante este texto, pode fazer assinatura preenchendo os campos que aparecem nesta página, para receber uma vez ao mês um breve resumo da edição em português de Opinión Sur.
[1] trad. de José Bento, Assírio e Alvim, 1982, 117.
[i] Para uma breve cronologia da China dinástica, ver Novas perspectivas sobre o pasado da China: a arqueologia chinesa no séculos XX, de Xiaoneng Yang (Yale University Press, 2004).
[ii] Para uma perspectiva occidental, mas astuta, ver https://www.economist.com/leaders/2021/06/26/chinas-communist-party-at-100-the-secret-of-its-longevity.
[iii] Às vezes controla territórios inteiros fora de suas fronteiras. Nas décadas recentes, a China adquiriu 68 milhões de hectares fora de suas fronteiras.
[iv] Curiosamente, a antiga “teoria da dependência” desenvolvida por cientistas sociais da América Latina hoje se aplica a China.
[v] No Ocidente, um caso parcialmente similar foram os investimentos britânicos nas estradas de ferro da Índia e da Argentina no século XIX. Ver o estudo clássico de Raúl Scalabrini Ortiz, Historia de los ferrocarriles argentinos. Ver também https://www.youtube.com/watch?v=uiAZqBDGXss)