Assalto aos países: não perder perspectiva e foco estratégico

Os dominadores procuram que percamos a perspectiva sobre que fatores condicionam a marcha planetária e, com isso, diluir o foco estratégico e as medidas prioritárias para desmontar a dominação.

É conhecido o desaforado processo de concentração da riqueza e do poder de decisão que predomina no mundo. Poderosas e impiedosas minorias se apropriam do excedente que a humanidade gera e impõem políticas e regulações que lhes favorecem. Utilizam meios que são quando menos ilegítimos e com frequência, ilegais. Seu poder se projeta muito mais além do econômico, determinam que governos assumem o controle do Estado estabelecendo relações de cumplicidade com setores da política, os meios e a justiça. Desse modo, se erigiram a timoneiros da trajetória global impondo princípios, valores e o sentido comum prevalecente.

Este tipo de ação tem gravíssimas consequências sobre a humanidade e o planeta. Arrasa com a natureza destruindo processos ambientais essenciais que permitem à Mãe Terra cobiçar todos os seres que a habitam. Gera irresponsavelmente efeitos secundários que não são outra coisa que impiedosos “danos colaterais” sobre milhões de pessoas. Açambarca cobiçosamente enormes recursos que depois “escasseiam” (isso, dizem) e não estão disponíveis para resolver desigualdades, pobreza, indigência, cuidado ambiental.

Os que dominam encobrem seus propósitos, já que são indefensáveis a céu aberto. Isso lhes permite colonizar mentes e formatar subjetividades para que as vítimas se transformem em sustentadores de seus próprios verdugos. Para lográ-lo, necessitam neutralizar qualquer intento de esclarecer aos submetidos sobre o que, em verdade, está acontecendo e, muito especialmente, os mecanismos através dos quais exercem sua dominação. Em síntese, encobrem os motores que geram e reproduzem a concentração e desacreditam as medidas que buscam liberar democracias que foram capturadas.

Nas linhas que seguem, consideramos dois críticos aspectos da ação de submissão que nem sempre são devidamente destacados. Os dominadores lançam torrentes de informações, muitas delas enviesadas, para que se perca perspectiva do mais relevante e, com isso, diluir o foco estratégico e as medidas prioritárias para desmontar a dominação.

Perder perspectiva  

Os meios nos bombardeiam de mil maneiras para fazer-nos perder perspectiva sobre o que acontece. Procuram assolar-nos com uma torrente de dolorosas notícias como a avalancha de atos delitivos, desastres naturais, horrendos assassinatos, violações, atos terroristas que, sem dúvida, sacodem as consciências. Paradoxalmente, essa torrente informativa é complementada com outra de banais espetáculos com consignas subliminares para enviesar valores e atontar a reflexão. O que é mais grave, desenvolvem permanentes campanhas midiáticas e políticas para semear ódios e mensagens insidiosas contra os que ameaçam a dominação. São os geradores ou aprofundadores de gretas no interior do conjunto social, aplicando a antiga consigna de “dividir para governar”.

É assim que se denunciam certos delitos e atos de corrupção, mas nunca ou pouco os enormes delitos e atos de corrupção que cometem os atores dominantes para concentrar tamanha riqueza. Um dos maiores processos apropriadores, conhecido por alguns mas não por todos, começa quando grandes corporações locais ou estrangeiras tem uma posição dominantes nas áreas onde operam (oligopólios) impõem preços tanto aos fornecedores que lhes vendem o que necessitam para produzir seus produtos como consumidores e outras empresas que os compram. Isto é, através do mecanismo de preços e comercialização se apropriam de cotas de valor (riqueza) que, se não detivessem esse poder oligopólio, não lhes corresponderia obter.

Agem extorquindo os que lhes vendem bens ou serviços, e os que compram seus produtos. Essa extorsão via preços encobre uma clara apropriação da riqueza que outros e a sociedade em seu conjunto geram.

Por que incluímos “a sociedade em seu conjunto”? Porque esses oligopólios que acumulam recursos apropriados com frequência eludem ou evadem o pagamento de impostos. Isto é, não pagam ao Estado o que lhes corresponderia para que possa financiar-se a infraestrutura social e produtiva imprescindível para o funcionamento de qualquer país. Ou seja, as grandes corporações utilizam caminhos, portos, formação laboral de seus trabalhadores, segurança e centenas de outros serviços e infraestruturas providas pelos Estados com impostos aportados pela inteira população mas esses, os dominantes, evadem total ou parcialmente sua cota de responsabilidade tributária. Ganham aquilo que merecem e também o que não merecem: o que apropriam de outros e o que não aportam tributariamente.

Um caso que comoveu a opinião pública mundial foi uma declaração do presidente Joe Biden dos Estados Unidos quando destacou (palavras textuais) que nos últimos anos os CEO (altos executivos de empresas) passaram de ganhar 20 vezes mais que um empregado para 350 vezes mais; que as 55 maiores corporações de seu país ganharam US$ 40 bilhões em 2020 e pagaram 0% de impostos, e que o 1% dos mais ricos evadem 116 bilhões de dólares ao ano. Se isso ocorre em um dos principais países centrais, imaginem o que evadem e fogem as grandes corporações em países em situações vulneráveis, quase todos os outros países.

Sigamos descobrindo o encoberto. Acabamos de destacar que os oligopólios se apropriam de cotas de valor gerados por outros e também que eludindo ou evadindo impostos logram se apropriar de outra grande cota de valor gerada pela inteira sociedade. Que fazem com esses recursos mal havidos por ilegais ou ilegítimos? Como são recursos não declarados, devem sair do âmbito nacional onde poderiam (oxalá) ser descobertos, fogem ao exterior utilizando a cumplicidade de entidades financeiras e “prestigiosos” estudo jurídicos e contábeis. A forma como fogem são múltiplas e diversas, algo já investigado ao nível global por Tax Justice Network  outras entidades internacionais e, ao nível da Argentina, por Jorge Gaggero, Magdalena Rua e outros destacados pesquisadores.

Demonstraram uma fuga de imensos recursos com a cumplicidade de entidades financeiras, jurídicas, contábeis e de alguns funcionários e reguladores. Por que dizemos “imensos” recursos? Em alguns países da América Latina, são fugas da ordem de 30 bilhões de dólares ao ano (30.000.000.000 de dólares cada ano) ou mais. O significativo é que os que fogem recursos apropriados e não declarados costumam ser sempre os mesmos. São conhecidos e, não obstante, agem com plena impunidade. Nenhum dos grandes apropriadores é levado a juízo, investigado e recebe a sentença que lhe corresponde, não irrisórias multas que lhes habilitam a seguir delinquindo.

O cidadão comum não pode pôr em perspectiva a enormidade desses 30 bilhões de dólares. Quiçá alguns possam dimensionar o que significa um roubo de 10 milhões de dólares, mas muitos setores médios e populares não podem referir o maiúsculo roubo sistêmico com a cotidianidade de suas rendas, pior ainda os marginalizados de serviços básicos fundamentais. Quem poderia enunciar tudo o que se poderia realizar com 30 bilhões de dólares ano após ano. Peço desculpas por reiterar a cifra de referência, mas se não se instalar essa envergadura na compreensão cidadã, não saberíamos do drama que estamos a cada ano atravessando.

Diluição do foco estratégico

Essa tremenda drenagem de recursos representa perder numa canetada uma parte significativa da poupança nacional; são excedentes que hoje não existem para cancelar a infame dívida social (eliminar pobreza, indigência, reduzir desigualdades) e poder financiar investimentos prioritários para o desenvolvimento do país. Obviamente não há recursos disponíveis porque foram apropriados e fugidos. 

Se isso se passa ano após ano e os meios e os reguladores sabem que se produz, conhecem as modalidades, as armadilhas e os cumplices que se utilizam, como não se detém a drenagem de recursos apropriados e não declarados?

Se bem a trama de cumplicidades pode chegar a ser extensa e poderosa, qualquer governo que cuida de sua população e seu meio ambiente deveria por um foco estratégico em recuperar esse fluxo de recursos. Não é uma medida a mais das muitas que devem ser encaradas.

Haverá que desmontar todos os mecanismos utilizados para roubar e fugir, cancelar a permissão de operação a entidades financeiras que participam de fugas ilegais, investigar a eventual cumplicidade de escritórios jurídicos e contábeis, de funcionários que deveriam controlar e não o fazem, de triangulações fraudulentas com empresas associadas radicadas fora do país, o uso de guaridas fiscais aproveitando a informação que surge de infiltrações como os Panamá Papers, os Pandora Papers e outros que apareceram e seguem aparecendo.

Resolver essa drenagem não é só responsabilidade do governo, mas da população que se inteira que isso sucede, compreende por que e como se produz, e o exige eleitoralmente como firme mandato popular. Eis aqui um trabalho político da maior envergadura.

Não é casual a cortina de fumaça que os dominadores geram para encobrir estes malfeitos. É certo a imensidão de informações que fazem circular (muitas enganosas), as enviesadas perspectivas que impõem, a enganadora repetição de certos recortes da realidade e o ocultamento e esquecimento de outros. Tudo isso e muito mais ocorre, sempre orientados a preservar sua dominação. Se bem não seja simples desmascarar o encoberto e menos ainda estabelecer outro rumo e forma de funcionar, é um desafio que muitos setores e organizações encaram; está em jogo o destino do país, da humanidade e do planeta.

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