Arde o mundo?

Digamo-lo de cara: o mundo arde, mas não só pela grande crise global que golpeia os países afluentes e ameaça projetar-se daí par o resto do planeta, mas também pelas outras crises surgidas da mesma matriz causal ainda que de mais longa data associadas a uma rampante desigualdade, ao doloroso atraso de comunidades despossuídas de voz, de saúde, de alimentação, de refúgio, de segurança, a existência de centenas de milhões de vítimas da injustiça, da avareza, dos fundamentalismos, ao agravo infligido à própria intimidade e significação.[[Este artigo é o capítulo 1 do livro Crisis global: ajuste o transformación, Editorial Opinión Sur, 2012]]

Arde o mundo e vale atender o ruidoso sonar dos alarmes, porém mais ainda encarar os desafios. Nossos males socialmente infligidos podem ser superados se atuarmos de forma diferente de como vimos fazendo; se revisarmos nosso devenir para compreender as dinâmicas que nos condicionam, se dentro de todas as correntadas identificarmos os sucessos que são necessários de preservar, se encararmos com uma justa mescla de determinação e de prudência transformações de rumo e de forma de funcionar.

Ninguém possui verdades únicas nem receitas mágicas, por mais que se nos haja querido impor um pensamento hegemônico que procura convencer-nos que suas perspectivas tão parciais como subjetivas representam o objetivo, o válido, o acertado. Quanto dano tem infligido à humanidade o fátuo intento de homogeneizar a heterogeneidade do entendimento, dos interesses, das necessidades, das emoções, dos desejos! É que essa diversidade encerra as chaves de nosso destino e as sínteses enriquecedoras que saibamos dia após dia elaborar, sustentarão melhores formas de viver e de conviver.

Não se resolve a profunda crise que afeta os países afluentes atuando tão só sobre os mecanismos de transmissão de efeitos (como o déficit fiscal, a amodorrada competitividade, o explosivo endividamento); impõe-se encarar as causas que, não por causalidade, se têm tratado de encobrir, ignorar ou desacreditar.

A partir de minha própria imperfeita e parcializada perspectiva, digo o seguinte:

(i) O desafio passa pela configuração de um novo rumo e funcionamento sistêmicos, pela transformação, e não pela restauração. Instalaram-se perversas dinâmicas econômicas que nos conduzem a crises recorrentes. Se não desmontarmos essas dinâmicas, os ingentes esforços que estão sendo despendidos para encarar esta crise, não só serão de futilidade absoluta, mas também terminarão beneficiando aos vitimadores.

(ii) As dinâmicas que conduziram à crise apresentam vários eixos e
dimensões, todos os quais necessitam ser revisados e transformados. Um dos mais importantes fios condutores desses processos tem sido a concentração da riqueza e dos ingressos em certas minorias privilegiadas, tanto em nível global como no interior dos países, das províncias e das cidades.

(iii) A concentração gera tremendas diferenças e injustiças, o que mina a coesão social e esteriliza ou desorienta boa parte do talento e da potencialidade das nações. Também nos distancia de um crescimento orgânico expondo o funcionamento econômico a estrangulamentos que dão passo a instabilidade sistêmica.

(iv) A demanda se segmenta entre os que dispõem de recursos para consumir muito a mais de suas necessidades básicas e culturais, os que vivem na pobreza sem poder cobrir sua subsistência e os setores médios que se expandem em fases de crescimento e veem sua demanda sustentada pelo financiamento do que logram alcançar. Dessa forma, “resolve-se” a brecha que aparece entre a oferta de um aparato produtivo que procura permanentemente expandir-se e uma demanda que ficaria atrasada se não fosse pela roda de reserva de auxílio que o financiamento de seu consumo lhes empresta.

(v) Este mecanismo funciona até certo ponto: o limite é a capacidade de pagamento que os endividados têm. Quando se ultrapassa esse limite, a situação se torna insustentável. A princípio o problema se oculta através de uma injeção maior de financiamento ciclo após ciclo até que, para surpresa dos que ignoram a artificialidade desta dinâmica, um certo dia a taxa de inadimplência cresce geometricamente e provoca destrutivas reações em cadeia. Estala abertamente a crise.

(vi) Não é que a crise tenha sido gerada em um dia; a dinâmica da concentração vem de antes, só que seus efeitos foram represados até onde os diques de contenção resistiram. Quando a pressão das quebras se transformou em erupção, a lava brotou queimando em sua passagem famílias, empresas, instituições.

(vii) Isto foi, é, inevitável? De maneira alguma. Se, em lugar de preservar a concentração a todo custo se houvesse dedicado boa parte da nova riqueza para incrementar as rendas genuínas de setores médios e para tirar da pobreza as enormes maiorias, muito distinta teria sido a trajetória sistêmica. A demanda teria acompanhado organicamente o crescimento da oferta e o financiamento teria se mantido dentro de limites de segurança, com o qual as brechas não teriam existido ou se teriam mantido em proporções manejáveis. Por que, então, não se seguiu essa trajetória?

(viii) As respostas são várias, mas todas muito duras: os que se beneficiaram com a concentração não quiseram abrir mão de privilégios, mas exercê-los plenamente; a cobiça desaforada se apoderou de grandes corporações, de especuladores, dos que delinquiram regulações com a impunidade que dá a desmedida do poder, o controle do Estado e das próprias decisões estratégicas. Como o fizeram? De muitas formas: subordinando outros atores por meio da força, da coesão, da compra de vontades, tomando o controle da política econômica e de formadores de opinião impondo, assim, sua particular visão da agenda política e econômica em quase todo o mundo, financiando usinas de pensamento estratégico que justificaram ideologicamente seus interesses, destruindo a diversidade e fazendo valer a supremacia de seus recursos e influências, alinhando a seu favor outros interesses menores de servidores e lacaios.

(ix) Tão espantosamente simples, linear, direto, foi o processo que terminou impondo a primazia quase universal da concentração econômica com seu correlato político, midiático, ideológico? Não, estaríamos nos enganando se acreditássemos que com uns poucos parágrafos caracterizar todas as relações causais e toda a diversidade de atores que participam, com maior, menor ou nenhuma consciência, de vários processos simultâneos que se influenciaram entre si e, algo para não esquecer, que adquiriram singularidades de acordo com as particulares circunstâncias de cada situação ou momento.

(x) Que outros aspectos impactaram forte? A partir do econômico, há muitas outras variáveis intervenientes: a concentração econômica não se dá em abstrato, mas se expressa em atores concretos que eufemisticamente são chamados de “os mercados”. “Os atores mais poderosos nos mercados são os fundos de investimento, que administram ativos por 18 bilhões de euros: 55% desses recursos provêm de poupadores dos Estados Unidos; 32% de europeus e só 13% do resto do mundo [[A maior gestora de fundos é a Blackrock, que administra recursos equivalentes a duas vezes o PIB da Espanha.]]. Seguem-lhe em importância os fundos de pensão (aposentadorias) que manejam cerca de 14 bilhões de euros. Logo estão os fundos soberanos criados por países com superávit fiscal; os principais são de Abu Dhabi, Noruega, Arábia Saudita, China, Kuwait, Singapura e Rússia, que administram 2,5 bilhões de euros. Logo vêm os influentes hedge funds ou fundos de alto risco que, se bem manejem ativos por um bilhão e meio de euros, utilizam a alavancagem da dívida e dos derivados que lhes permite multiplicar várias vezes seu impacto real nos mercados: seus agressivos propósitos e altamente especulativas estratégias costumam gerar fortes focos de instabilidade acompanhados de corridas e pânico”. [[Informação compilada de várias fontes por David Fernández do jornal El País, da Espanha, e apresentada sucintamente em sua edição de 4 de agosto de 2011.]]

(xi) Não somente a magnitude de recursos que este punhado de atores administra é fenomenal mas a forma como o gerem é aterrorizante: os objetivos que perseguem, refletidos em seus critérios de investimento, geram instabilidade sistêmica. É que cada fundo é conduzido por administradores profissionais que recebem um mandato de maximizar benefícios ponderados pelos riscos que assumem. Isto condiciona a destinação de vultosos recursos a uma esperada rentabilidade e não a outros interesses ou objetivos. Tanto é assim que se o gestor de um fundo não obtém a rentabilidade esperada, não é premiado com os generosos bônus por “êxito” que os funcionários usualmente recebem. Deste modo, e com poucas e honrosas exceções, o mundo fica à mercê de gestores orientados pelo afã de conseguir resultados mas sem obrigação de considerar as consequências de sua ação sobre o conjunto social nem sobre o sistema que os privilegia. Estamos na presença de burocracias treinadas e incentivadas a especular, compensadas em função dos sucessos financeiros de curto prazo, que nem medem nem consideram os efeitos colaterais de suas decisões.

(xii) Esses fundos (o núcleo duro dos “mercados”) não só recolhem poupanças de setores afluentes mas também de setores médios que, por seu grande número, pesam forte. O trágico para este pequenos e médios poupadores (ansiosos por obter os mais altos retornos possíveis) é que seu dinheiro é canalizado para destinações que, na presença de uma crise e ultrapassados os primeiros limites de onde sucumbem os mais frágeis, acabam gerando instabilidade sistêmica que atenta contra seus próprios interesses.

(xiii) Mas, tão pouco com estes agregados se descrevem todas as causas geradoras da crise. Outra da maior importância é o desvio do consumo para um consumismo irresponsável que, com a cumplicidade de corporações e seus publicitários, utiliza sem piedade recursos naturais não renováveis ou de difícil renovação, produz resíduos e combustão que contaminam o meio ambiente, gerando processos de alcance planetário (aquecimento global, erosão, perda de aquíferos, entre outros) de efeitos incalculáveis.

(xiv) Também o desenvolvimento científico e tecnológico tem um papel importante na crise: por um lado, aporta avanços espetaculares que incidem sobre a qualidade de vida da população mundial nunca antes vistos na evolução da humanidade; por outro lado, boa parte desse desenvolvimento científico e tecnológico acelera o processo de concentração econômica, a destruição do meio ambiente, a alienação existencial, a capacidade de destruição militar. Como acontece com todo conhecimento, o impacto da ciência e da tecnologia sobre nossas vidas depende dos que controlam sua orientação e aplicação. Se, por exemplo, os que têm o poder econômico para controlar a investigação médica desejassem não resolver uma enfermidade para assegurar o lucro de seguir vendendo os medicamentos registrados que produzem, ocultarão ou reterão seus achados o quanto lhes convenha; igualmente, se os complexos industriais fabricantes de sofisticados armamentos [[De acordo com cifras do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, só as guerras do Iraque e do Afeganistão tiveram um custo de 9, 7 bilhões de dólares mensais.]] necessitarem seguir contando com espaços de “mercado” que comprem o que produzem, pois obscuras influências seguirão convergindo para ajudar a desestabilizar áreas por si conflitivas. Esta orientação de desenvolvimento científico e tecnológico para objetivos que não contribuem para construir desenvolvimento justo e sustentável não se dá somente no plano da saúde e do armamentismo, mas em todas as frentes da atividade humana: desde a produção de sementes à geração de energia, o transporte, a educação, o abuso do descartável, e a lista se estende até onde sejamos capazes de identificar o bom ou mau uso da ciência e da tecnologia. Por certo que não se trata de bloquear o desenvolvimento científico e tecnológico mas sim de orientá-lo com firme determinação para o bem-estar dos povos e a preservação do planeta.

(xv) Enquanto a crise angustia os afluentes, que a creem somente financeira, e os meios enchem seus espaços com manchetes que lhes interessam, assustam e paralisam suas audiências, somente na Somália, de maio a julho deste ano de 2011 morreram de fome 29.000 crianças menores de cinco anos. Pode-se entender, ainda que absolutamente inaceitável, a desproporção das preocupações que mobilizam ou paralisam a uns e outros. A desigualdade, a pobreza, o menosprezo político das maiorias, a opressão comercial, a descarnada especulação, parecia que corriam por vias separadas, mas não é assim. Se surpreenderam as virulentas explosões no mundo árabe, na Grécia, em Londres, em Madri, no Chile, e em tantos outros lugares menos reconhecidos, o que pensamos pode acontecer quando algumas dessas águas convergirem sobre as mesmas margens?

(xvi) Diante de uma crise, países, corporações e pessoas procuram transferir a outros o custo dessa traumática situação. É óbvio que os mais poderosos têm maior capacidade para se desfazer de suas próprias responsabilidades. Daí que os menos poderosos se mobilizem para proteger seus ameaçados interesses. Nem o pânico, nem olhares espantados ajudam. É no fragor da crise que se tomam decisões cruciais. Soluções orientadas a “resgatar” os que têm sido os timoneiros do desastre descarrega sobre os mais fracos o peso de uma restauração que restabelecerá dinâmicas semelhantes às que a crise gerou. Hoje, a opção é transformar, e não restaurar.

(xvii) Qualquer transformação necessita partir do que existe e não destruir conquistas que tenham valor, só que é imprescindível estabelecer novas regras de jogo que possibilitem ajustar o rumo sistêmico rumo a um desenvolvimento mais justo e sustentável.

(xviii) Não é menor o desafio: haverá que elaborar um reto pensamento para poder assegurar um reto proceder. Será necessário compreender o que acontece já não a partir da perspectiva dos privilegiados, mas da justiça social e de uma democracia plena muito menos imperfeita da vigente na maioria dos países. Haverá também que renovar as lideranças que não estejam com capacidade ou vontade da dar passo e conduzir as impostergáveis transformações.

É verdade que o mundo arde, que as realidades são complexas e que os desafios nem são poucos, nem simples. Mas trata-se disto. Também há talento, determinação, prudência, vigor para ir adiante. Estamos no umbral de um mundo necessitado de se transformar e este é o momento para fazê-lo, quando a lava ainda não se cristalizou. Toca colocar o melhor de cada um para ajustar o rumo para uma mais sustentável, justa e compassiva utopia referencial. Esta épica marcha não é nova, chega desde épocas remotas carregada com as imperfeições e perfeições da natureza humana. Só que hoje os convocados para avançar somos nós.

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