Redistribuir rendas produzidas de maneira concentrada assim como desconcentrar a geração de riqueza facilitando a formação de capital em setores populares constituem duas estratégias complementares para aprofundar a inclusão social.Concentração econômica e redistribuição de renda
Em um contexto de crescimento concentrador, uma opção para realizar a inclusão social é redistribuir uma parte das rendas geradas pelo sistema econômico concentrado aos setores populares, por exemplo, adotando um sistema tributário mais progressivo e uma melhor orientação social do gasto público. Deste modo, o sistema econômico segue gerando riqueza de maneira concentrada enquanto o Estado procura aplicar medidas compensatórias: capta renda por meio do endividamento e dos tributos que impõe e os destina a financiar serviços e infraestrutura produtiva e social que melhorem o nível de vida dos setores populares. Enquanto a economia funcionar bem e o governante tenha força política para manter esta transferência de renda, as políticas redistributivas promoverão inclusão social.
Não obstante, diversas circunstâncias atentam contra o propósito de compensar, mas não transformar, a concentração. Por um lado, o poder econômico logra evadir boa parte de suas obrigações tributárias, com o que reduz significativamente o nível de renda disponível para redistribuir; ademais, exerce grande influência sobre a definição das políticas fiscal (impõe regressividade) e de gasto público (orienta destinações em função de seus interesses).
Por outro lado, o montante de captação de recursos que pesa sobre os que não evadem tem claros limites: a carga tributária não deveria tornar inviável a produção nacional, nem os níveis de endividamento ultrapassar a capacidade de pagar as dívidas contraídas. É que em um contexto altamente competitivo, quem se atrasa em crescimento e inovação se arrisca a ser deslocado por atores mais dinâmicos de outros países. Isto é, se a carga tributária afetasse a capacidade nacional de competir e não pudesse o Estado suportar a viabilidade de empresas e empreendedores através da melhoria do entorno socioeconômico, então o modelo embasado na geração concentrada de renda para logo redistribuir uma parte deles se deterioraria (veja-se o caso europeu) e poderia terminar colapsando.
Nesse entorno, o capital financeiro e as grandes corporações multinacionais logram extrair os melhores resultados já que podem escolher em que países operar e dispõem de um sem número de mecanismos para minimizar o pagamento de impostos, como subfaturar o que produzem a favor de filiais radicadas em guaridas fiscais [[No dia de encerramento deste artigo, a autoridade tributária da Argentina suspendeu a subsidiária local de uma das maiores comercializadoras internacionais de grãos, acusando-a de evadir impostos por meio de “operações de triangulação nociva” de 1,2 bilhões de pesos (256 milhões de dólares). Os grãos eram enviados à China e à Índia mas a filial local subfaturava a mercadoria a um trader uruguaio localizado na Zona Franca que logo faturava para o cliente o total real. O benefício ficava para a comercializadora em uma jurisdição onde não se paga imposto sobre os lucros, consumando o delito de evasão fiscal que castiga, em última instância, a população argentina. Quantas outras operações delitivas similares HAVERAM SIDO ((foram)) realizadas sem terem sido detectadas!.]] Logram sortear as regulações nacionais e competem com vantagens ao evadir boa parte do peso da redistribuição de renda.
Desse modo, a lógica de um processo que gera riqueza de forma concentrada e logo redistribui um segmento das rendas assim produzidas, enfrenta severos condicionantes que podem afetar a mesma base de sustentação do processo: isto é, a capacidade de gerar renda suficiente para sustentar no tempo a redistribuição. Eis aqui uma tensão inerente a todo processo concentrador: busca preservar a taxa de juros dos setores privilegiados, necessita assegurar a viabilidade econômica do sistema que sustenta os privilégios e deve financiar necessidades sociais que puderam chegar a desestabilizar a trajetória escolhida.
Um objetivo adicional para as políticas redistributivas: financiar a formação de capital em setores populares
Vale apontar que as políticas redistributivas podem ser utilizadas tanto para amenizar efeitos não desejados de um crescimento concentrador sem modificar sua natureza como, ao contrário, para acompanhar e reforçar esforços que procurem transformar essa forma de crescer. Tão distinta funcionalidade dependerá da orientação que se estiver imprimindo ao desenvolvimento nacional já que é nesse contexto que se definem os objetivos que as políticas redistributivas haverão de perseguir.
Portanto, assim como existem distintos tipos de crescimento econômico, também podem ser adotados diferentes tipos de políticas redistributivas, uma dupla obviedade que, surpreendentemente, é com frequência ignorada.
Perguntamo-nos, então, como, a partir do âmbito das políticas redistributivas se poderia atuar para avançar para um crescimento econômico inclusivo que sirva de embasamento a um desenvolvimento sustentável.
Uma opção transformadora da maior importância é canalizar uma parte significativa do que se quer redistribuir para a formação de capital nos setores majoritários que recebem pouco ou muito pouco dos resultados do crescimento econômico. O propósito é mobilizar o talento e a potencialidade produtiva que se aninha nos setores populares absurdamente desaproveitados e, com isso, lograr vários efeitos simultâneos: contribuir para o desenvolvimento econômico local, melhorar a distribuição da renda e, paulatinamente, reduzir a dependência das próprias políticas redistributivas.
Esta ação transformadora se caracteriza, então, por (i) orientar recursos de investimentos para setores populares de modo a promover sua mobilização produtiva; (ii) dada a envergadura dos desafios a enfrentar, a ação necessita ser de ampla cobertura e não se limitar a encarar uns poucos projetos demonstrativos; (iii) para assegurar efetividade, é imprescindível estabelecer os novos empreendimentos em setores promissores e com adequadas produtividades; e (iv) esta mobilização produtiva de setores populares deve promover atores econômicos responsáveis que, em sua ação, cuidem do meio ambiente e fortaleçam a coesão social. O propósito último é lograr uma massiva, efetiva e responsável mobilização produtiva de setores populares hoje postergados, mobilização que se constitui em um dos sustentos de um crescimento inclusivo não concentrador.
A implementação das políticas redistributivas
As políticas redistributivas são gestionadas pelo Estado mas, para serem efetivas, necessitam envolver uma diversidade de atores e, portanto, desdobrar-se em vários níveis: (i) no nível das políticas macroeconômicas (como gasto público, tributárias, monetárias, de investimento, científicas e tecnológicas) de modo a ajustar sua orientação para atender interesses e necessidades dos setores populares; (ii) no nível da promoção de mudanças na conduta mesoeconômica dos que lideram cadeias produtivas, já que esses atores incidem decisivamente sobre compensações salariais e demais condições laborais, têm a capacidade de promover o desenvolvimento orgânico de todos os integrantes de sua cadeia de valor e, através de suas decisões corporativas, podem gerar efeitos positivos ou negativos sobre o contexto social em que se desenvolvem; (iii) no nível de ações de apoio direto a setores populares para financiar e estruturar adequadamente seu acesso à formação de capital da qual derivar as maiores rendas; e (iv) no nível dos que são formadores de opinião pública (meios de comunicação, organizações da sociedade civil, movimentos sociais) com o propósito de assegurar respaldo cidadão à adoção de um rumo de desenvolvimento justo e sustentável.
As medidas implementadas pelas políticas redistributivas têm diferentes alcances. Algumas medidas impactam quase todos os setores de baixa renda, como um maior e melhor gasto em educação primária, colégios técnicos, centros de saúde e hospitais, saneamento ambiental e segurança da vizinhança. Outras medidas têm em troca impactos diferenciados como, por exemplo, melhorias salariais e de condições de trabalho que beneficiam preferencialmente trabalhadores registrados, só indiretamente aos trabalhadores informais e não beneficiam desempregados e indigentes que realizam trabalhos ocasionais de subsistência.
No que tange à promoção da formação de capital em setores populares, há muito o que considerar. A política econômica geralmente apresenta a necessidade de incrementar o investimento e a formação de capital em diversos setores, às vezes priorizando aqueles considerados mais promissores e estratégicos para o desenvolvimento do país. O que nem sempre se explicita é quais atores sociais são os que participarão deste incremento do investimento e, em particular, como os setores populares poderiam canalizar uma parte da poupança nacional para financiar sua própria formação de capital contribuindo, assim, para abater a desigualdade e reforçar a sustentabilidade socioeconômica do crescimento.
Daí que não é suficiente somente determinar que nível de formação de capital é necessário para sustentar um certo nível de crescimento, mas também considerar a composição de novo capital que se agrega à economia. O tipo de formação de capital que prevalece terá implicações sobre vários aspectos da estrutura social e econômica de um país: entre outros, o grau de crescimento orgânico que se alcança, em que magnitude os diferentes atores sociais aproveitam dos efeitos dos novos investimentos, a diferente propensão a importar de cada tipo de investimento e, não menos importante, a muito diferente propensão de evadir e fugir capitais apresentada pelos distintos setores.
Quando se assiste a setores populares para que participem com melhores possibilidades do processo produtivo, geração e distribuição de renda conformam um só ato socioeconômico, com um importante efeito sistêmico adicional: à medida em que aumenta a geração desconcentrada de renda popular, o peso das medidas de redistribuição tenderá a diminuir ou, quando menos, a conter sua expansão.
Como canalizar com efetividade recursos de investimento a setores populares
Para consegui-lo, deverão ser desenvolvidos sistemas de apoio ao pequeno e micro produtor que lhes permitam acessar o melhor conhecimento disponível em matéria tecnológica e de gestão, a moderna engenharia organizativa, recursos financeiros e apropriados contatos comerciais. É que as grandes maiorias populacionais se desenvolvem em atividades produtivas de baixa produtividade; muitas delas meramente de subsistência. Dadas as circunstâncias de escassez de todo tipo de recursos, a passagem de sua situação presente para outra mais promissora não se alcança facilmente e muito menos se avança isoladamente.
É certamente crítico subir a escala das soluções produtivas, o que está longe de significar “amontoar” pequenos produtores em estruturas pesadas, pouco eficientes, desprovidas da agilidade e da efetividade requeridas para navegar em mercados competitivos. O desafio é articular a pequena produção dispersa em organizações de porte médio com apropriada capacidade de gestão que consigam se inserir em promissoras cadeias de valor.
Desse modo, a ação redistributiva não se esgota somente em canalizar financiamento para os setores majoritários: requer fazê-lo efetiva e responsavelmente, assegurando sustentabilidade às soluções produtivas adotadas e promovendo atores econômicos que não afetem o meio ambiente e a coesão social.
Que tipo de engenharia organizativa poderia ser utilizada? Há disponível uma grande diversidade de opções.
Por um lado estão os bem conhecidos sistemas de franquias, em que um franquiado convoca um número de pequenos produtores que aceitam homogeneizar sua produção, fazer suas compras em conjunto, comercializar sua atividade sob uma marca única, adotar critérios comuns de gestão, de atenção a clientes, de níveis de qualidade, etc. Os franquiados se submetem a um regime de capacitação, supervisão e controle de qualidade com sanções para os que transgredirem. Em troca disso, cada um dos pequenos produtores aspira obter resultados maiores do que alcançaria se agisse por sua conta, ao mesmo tempo em que conserva a propriedade de seus ativos. Em uma franquia orientada a mobilizar produtivamente setores populares deve adicionar-se um crítico terceiro ator que está ausente nas franquias comerciais ordinárias [[Formado por diversas combinações de representantes do setor público (local, estadual ou nacional) agências de desenvolvimento, fundações, empresas responsáveis, universidades, entre outros.]] e cujo papel principal é tanto trazer contatos, acesso a mercados e a financiamento, como assegurar equidade na distribuição de resultados.
Outras engenharias organizativas orientadas para estruturar com efetividade a mobilização produtiva de setores populares incluem consórcios de exportação, comercilizadoras especializadas e outras centrais de serviços que atendem redes de pequenos produtores, agroindústrias locomotoras, cooperativas de segundo e terceiro nível que enfrentam aspectos de comercialização, transformação ou financiamento da produção de cooperativas de base, entre outras modalidades.
Porém, quem poderia ajudar a (i) estruturar estes distintos tipos de empreendimentos inclusivos, (ii) identificar boas oportunidades econômicas e (iii) assisti-los para que possam aproveitá-las? Vários tipos de organizações, incluindo as que Opinión Sur denomina desenvolvedoras de empreendimentos inclusivos, que são pequenas equipes bem qualificadas com capacidade para trazer suas contribuições e, ademais, mobilizar apoios técnicos e financiamentos de outras fontes. Por aí se abre uma muito promissora linha de trabalho do setor público e de organizações de desenvolvimento orientada a promover com efetividade a formação de capital em setores populares.