O vertiginoso processo global de concentração de ativos e de renda, com seu correlato de crescente desigualdade social, é um dos principais fatores responsáveis da instabilidade sistêmica, afetando a segurança global e o desenvolvimento sustentável dos países. As situações se tornam inviáveis e terminam explodindo quando as medidas adotadas para encarar os problemas que a concentração gera, em lugar de resolvê-los, são inefetivas ou os agravam. Dói comprovar a futilidade dos esforços e as transformações que se poderiam realizar com tamanho financiamento. A forma como funciona a economia mundial faz que alguns países concentrem uma enorme proporção da riqueza global e também que, no interior dos países, a riqueza e a renda se concentrem em alguns segmentos populacionais em detrimento do resto. Este processo de concentração e desigualdade se dá em quase todos os países com variações de grau segundo os casos. Nos países do Sul, a desigualdade se apresenta com o agravante de uma extensa pobreza e indigência.
A concentração econômica é um dos principais fatores geradores das crises e as persistentes turbulências sociais. Essa concentração é sustentada por uma dinâmica econômica que impacta negativamente sobre a sociedade e o próprio sistema econômico. As situações tornam-se inviáveis e terminam explodindo quando as medidas adotadas para encarar os problemas que a concentração gera, em lugar de resolvê-los, são inefetivas ou os agravam.
(i) Distanciando-nos mais ainda do crescimento orgânico
O processo de concentração consagra a preeminência de uma minoria cada vez mais afluente e a subordinação de amplas maiorias atrasadas em renda e capacidade de produção. Isto provoca sérias distorções econômicas e sociais.
A concentração de ativos e renda gera uma brecha que se expande com o tempo entre a oferta de bens e serviços de um aparato produtivo que procura sempre crescer e uma demanda limitada em suas rendas que não logra absorver plenamente a capacidade de oferta. Diante desta situação, pode-se ensaiar diferentes tipos de respostas que, bem estruturadas e geridas, poderiam complementar-se, gerando virtuosas dinâmicas de desenvolvimento mas que, mal estruturadas ou geridas, terminam deslizando para crises como a que os países afluentes hoje atravessam.
Na maioria dos casos, as respostas não buscam transformar as dinâmicas que as crises geram, mas que procuram restaurar a ordem de pré-crise. O custo social e econômico dos “resgates selvagens” é enorme; são poucos os governos que têm a clareza e o poder suficientes para propor uma diferente destinação desses vultosos recursos. Dói comprovar a futilidade dos esforços e as valiosas transformações que se poderiam realizar com tamanho financiamento.
Assim, por exemplo, a brecha gerada por um processo de concentração entre um dinâmico sistema produtivo e uma lânguida demanda [[O processo de concentração econômica segmenta a demanda: os favorecidos pela concentração conformam um segmento de demanda conspícua que os diferencia socialmente dos demais; a seu lado, coexistem setores de baixa renda que não conseguem senão parcialmente satisfazer suas necessidades básicas e setores médios que, uma vez cobertas essas necessidades, procuram, induzidos pela publicidade, remediar o padrão de consumo supérfluo. A demanda conspícua leva ao aparato produtivo a produzir os bens e serviços que ela requer, fortalecendo com suas compras as empresas que os abastecem, cujos interesses ficam aí associados à manutenção do padrão de consumo conspícuo e do processo de concentração que o sustenta.]] que, por insuficiência de renda, não logra absorver plenamente o que se produz, é encarada não melhorando as rendas genuínas (implicaria afetar o próprio processo de concentração) mas facilitando o financiamento. Ao colocar empréstimos em setores de renda média e baixa, tonifica-se a demanda que supre com esses financiamento a falta de suficientes rendas genuínas. O crédito é um poderoso instrumento que facilita o funcionamento econômico sempre e quando não se ultrapasse a capacidade de pagamento dos que o contraem. Mas, se não se altera o processo de concentração, aquela brecha entre a oferta e demanda efetiva tenderá a se reproduzir e a necessidade de financiamento se tornará permanente comprometendo a capacidade de pagamento das famílias endividadas. A situação fica assim exposta para que, diante de qualquer circunstância destoante, estoure essa imensa bolha financeira. Quando a reação em cadeia adquire envergadura sistêmica já não cabe explicar o que acontece tão somente por uma má ou delitiva gestão de certos operadores financeiros. A responsabilidade dessa gestão, acostumada à impunidade e marcada pela avareza, é haver provocado o estalido, mas foi a dinâmica concentradora, que não se quis ou não se pôde transformar, a que gerou brechas e distorções. Estas situações foram logo agravadas ao adotar erradas soluções substitutas, como foi o estendido sobre o endividamento criador das insustentáveis bolhas financeiras que nos levaram à crise.
(ii) Concentração de enormes excedentes financeiros
Consideremos o mesmo processo de concentração porém a partir da perspectiva dos que se beneficiam e acumulam enormes excedentes financeiros que requerem ser reciclados.
O atraso de demanda que provoca o processo concentrador reduz as oportunidades de investimento na economia real assim como suas rentabilidades. Em troca, nesse contexto de debilitada demanda e necessidade de sustentar o nível de produção, o sistema financeiro encontra uma lucrativa oportunidade estruturando novos produtos para financiar o consumo. Com promessas de boas rentabilidades e encobrindo os riscos sistêmicos, conseguem atrair os excedentes que buscam reciclar-se. Não explicitam que, ao não se ampliar a base de sustentação de suas engenharias financeiras (que seria uma demanda fortalecida com rendas genuínas obtidas da transformação da dinâmica concentradora), a situação econômica e seus audazes esquemas financeiros tornam-se inerentemente insustentáveis.
Isto foi o ocorrido com os empréstimos hipotecários subprime e outros empréstimos para o consumo (cartões de crédito) que marcou o início da crise contemporânea nos países afluentes.
(iii) Reação em cadeia e futilidade dos ajustes restauradores
O início da crise suscitou uma reação em cadeia quando ficou em evidência que a fenomenal brecha entre as rendas se havia fechado transitoria e artificialmente sem alterar as causas que a geraram. O processo de concentração mantinha sua vigorosa dinâmica e aumentava a defasagem entre a taxa de crescimento da oferta produtiva e a taxa de crescimento das rendas genuínas, o que mantinha o atraso da demanda. Para fechar a brecha sem afetar o processo de concentração, o sistema econômico requeria que se seguisse injetando mais e mais financiamento: um esquema piramidal semelhante ao que levou à prisão perpétua conhecidos caloteiros ainda que, por sua envergadura sistêmica, envolveu cifras infinitamente superiores. É inevitável refletir sobre o fato de que um calote estruturado como política econômica com efeitos ainda mais devastadores receba muito distinto tratamento.
A reação em cadeia levantou véus de encobrimento expondo a fragilidade de uma forma de funcionar concentradora que implica uma inerente instabilidade sistêmica. Não se limitou à explosão ao mercado das hipotecas subprime e os cartões de crédito mas que sua débâcle arrastou ao resto do sistema econômico dos Estados Unidos e, logo, projetou-se sobre os países europeus. É que ao se levantar o véu financeiro, ficou exposta a quebra de crescimento orgânico e as consequências resultantes de se haver adotado soluções substitutas: um superendividamento impossível de sustentar.
Maior foi o impacto quando ficou em descoberto que o superendividamento não somente envolvia famílias, unidades produtivas e as entidades financeiras que haviam lucrado com esses esquemas, mas também aos próprios países soberanos que haviam utilizado uma fórmula semelhante para sustentar sua forma de funcionar sem alterar a concentração que minava sua base de sustento.
Não obstante, a tragédia se fez ainda maior quando as mesmas forças que sustentaram o processo concentrador lograram impor resgates restauradores. Frente à indubitável e imperiosa necessidade de ajustar o funcionamento econômico e fiscal, as medidas adotadas não se orientaram para transformar a concentração e assim sentar as bases de um desenvolvimento sustentável, mas sim fechar as brechas, abater os déficits afetando ainda mais as rendas genuínas dos setores majoritários coom o que agravam o atraso de demanda e reforçam a dinâmica concentradora. A história mostra que não há somente perdedores nas crises: perdem sempre as maiorias que carregam sobre os ombros o peso dos ajustes restauradores mas há minorias ganhadoras que lucram com a desgraça dos muitos e emergem ainda mais fortalecidas das situações perturbadoras.
Opinion Sur



