Vender sorvetes para chegar a ser empreendedor?

Em maio de 2015, com destaque publicitário, anunciou-se um programa para contribuir para a redução do emprego juvenil e apoiar seu espírito empreendedor, como parte da responsabilidade da empresa diante da sociedade. O programa, em princípio, é muito elogiável, permitirá a alguns jovens ganhar algum dinheiro no verão e, o que é mais importante, irá mantê-los ocupados em uma atividade produtiva.

Mas contribuirá para a redução do emprego juvenil e para o desenvolvimento de empreendedores? É o melhor que uma empresa responsável perante a sociedade pode fazer pelos jovens? Seus benefícios estarão supervalorizados e os custos e riscos subvalorizados? O programa estará bem vendido? Teria sido o programa capturado pelo marketing e as relações públicas em detrimento da Responsabilidade Social Empresarial (RSE)?

 [1]

Às vezes, o pessoal de Comunicação anda de mãos dadas, e o pessoal de RSE, apesar de suas melhores intenções, sucumbem às pressões. Segundo o boletim informativo da empresa (ênfase acrescentada):

“A marca de sorvetes Frigo pôs em marcha ’Sou Frigo’, uma iniciativa para impulsionar o emprego entre universitários e jovens em risco de exclusão social na Espanha. O projeto, impulsionado pela Unilever através da Frigo, é de âmbito mundial e tem como objetivo criar 100.000 empregos em todo mundo até 2020, para combater o grave problema da alta taxa de desemprego juvenil, acima dos 52% na Espanha… a Frigo prevê que 500 jovens espanhóis possam participar este ano da iniciativa.”

Será o “risco de exclusão social” o critério de seleção ou é só uma tentativa de parecer solidário? Não aparece como critério na aplicação do programa. Tampouco é fácil de determinar.

“O programa se enquadra no Plano Nacional de RSE, o que converte a Frigo em uma das primeiras marcas a desenvolver um programa orientado integralmente para o desenvolvimento profissional e a inserção laboral dos jovens, além de se somar à Estratégia de Empreendimento e Emprego Jovem do Ministério”.

É o ensinar a vender sorvetes durante o verão um “programa de desenvolvimento profissional e inserção laboral”? Ou uma tentativa de usar as palavras que se deve usar para ficar bem com o governo?

Antes de chegar às ruas, os jovens do programa “Sou Frigo” receberão uma formação em que lhes ensinarão técnicas de venda, controle de estoques, manipulação de alimentos, contabilidade, marketing e redes sociais, com o objetivo de melhorar suas atitudes e capacidades para gerir seu posto de sorvetes e, sobretudo, para sua empregabilidade futura.

O programa desenvolverá “atitudes e capacidades para gerir seu posto de sorvetes”? Desenvolvimento profissional?

Os participantes na iniciativa terão a possibilidade de gerir durante a campanha um equipamento (moto, bicicleta, carrocinha…) de venda de sorvetes como se fosse seu próprio negócio… Assim, os consumidores que comprarem nos postos de sorvetes da “Sou Frigo” não só estarão desfrutando de seu sorvete, mas estarão ajudando a criar emprego.

Há que mostrar aos consumidores que, ajudando a Frigo a ter mais vendas, “estarão ajudando a criar emprego”. Boa estratégia de marketing. As demais vendas não ajudam a criar emprego?

A duração da participação no programa (será limitada)…dependerá da duração do evento e haverá outros que estarão localizados em praias, nas quais o período de venda se estenderá até o final do verão… Uma vez concluída essa primeira fase do programa, a Frigo oferecerá um prêmio aos três melhores vendedores, baseando-se no volume de vendas e na originalidade da dinamização. Entre esses prêmios, estará a possibilidade de fazer umas práticas remuneradas na Unilever (ênfase acrescentada).

Os incentivos estão em volume de vendas e o prêmio para os “três melhores vendedores” é a “possibilidade de fazer práticas remuneradas”. Isso é criação de emprego e desenvolvimento profissional?

Não creio que haja dúvidas de que a criação de emprego e o apoio ao empreendimento é uma responsabilidade das empresas diante da sociedade. É precisamente uma responsabilidade descuidada na grande maioria das empresas. Por isso, publiquei um artigo sobre esse tema na revista Globalización, Competitividad y Gobernabilidad (Vol. 7, No. 3, Set-Dez 2013, Empleo y emprendimiento como responsabilidad social de las empresas ) onde advogava por maior ação por parte das empresas e pelo desenvolvimento de um ecossistema de apoio por parte dos governos, sociedade civil (especialmente universidades) e as mesmas empresas.

É muito necessária a criação de postos de trabalho. Mas cumpre o programa “Sou Frigo” com o objetivo enunciado em seus boletins informativos de contribuir para a criação de emprego e desenvolver o empreendimento? Nada contra vender sorvetes pelas ruas e nas praias. A pergunta é se isso é um programa que pretende ajudar os jovens desempregados, a empresa ou a ambos. E se é esse último, como deve ser, seria desejável que os benefícios das maiores vendas fossem reinvestidos nos jovens. Isso é o melhor que a Frigo pode fazer pelos jovens? Sem dúvida é uma excelente estratégia de comercialização, mas o é de responsabilidade social? A publicidade reflete a realidade do programa?

Para responder a essas perguntas há que se analisar as condições sob as quais se cria o mencionado emprego, que implicitamente mostram o que deveria ser um programa de responsabilidade diante da sociedade para fomentar o emprego e o empreendimento:

·  O programa cria emprego ou é só ocupação? E o emprego temporário? ·  O que acontece com os jovens ao terminar a temporada? Outra vez desempregados? ·  Têm contrato com os correspondentes benefícios? ·  Que obrigações adquirem os jovens? ·  O que acontece se ao final do treinamento não querem trabalhar? ·  Aprendem algo mais que “gerir um ponto de sorvetes”? ·  Como participam dos benefícios das vendas? Por comissão? Por salário? ·  Têm cotas de vendas? E se não as cumprirem? ·  Que riscos correm? Devem comprar ou alugar os carrinhos, bicicletas ou motos da empresa? ·  Quantos se converterão em empreendedores e quantos adquirirão emprego permanente?

As respostas a essas perguntas nos permitirão responder sobre a legitimidade do programa como parte da responsabilidade da empresa diante da sociedade e sua contribuição. Não temos as respostas, o sítio web do programa Sou Frigo não as responde. Animamos o leitor a analisar o programa em função das respostas que encontre ou suponha a essas perguntas.

Oxalá a Frigo as respondesse como parte da promoção do programa.

É surpreendente que a empresa reconhecida como líder mundial de sustentabilidade e inovação a serviço da sociedade, a Unilever, com um extraordinário e admirado líder como CEO, Paul Polman, crie um programa tão tímido como o “Sou Frigo”. Por coincidência, o mesmo dia que se anunciava o programa e no mesmo país, o Sr. Polman recebia o prêmio ESADE de melhor liderança por promover o apoio à inovação para o crescimento socialmente responsável das empresas (na opinião do subscrito, muito, muito merecido).

E quais são os incentivos com que operará o programa? Há um prêmio a quem vender mais sorvetes. Quem ganha se todos se esforçam em vender mais sorvetes? A empresa captura os esforços de todos e premia três com a possibilidade de fazer práticas remuneradas. O que resta aos três jovens ganhadores dentre os 500 participantes? Um emprego? Por que não lhes dão um trabalho permanente na empresa aos que se destaquem por sua criatividade e empreendimento em vez da “possibilidade de fazer práticas” por ser um bom vendedor?

Quando o subscrito tinha 13 anos, ofereceram-lhe um trabalho semelhante durante o verão, de vendedor ambulante de limpador de pisos, de casa em casa, de apartamento em apartamento. Não era parte de nenhum programa de RSE (há muitas décadas), era utilização de mão-de-obra barata, de fato, sem salário, ganhávamos uma comissão por garrafa vendida. O único dia que “trabalhei” vendi duas garrafas e uma quebrou. Tive que pagar à empresa a mesada semanal que me dava meu pai. Mau negócio… para mim. A empresa vendeu três garrafas.

Mas aprendi muito: nunca mais voltei a ser vendedor ambulante, nunca mais me submeti à humilhação de tocar campainhas e receber respostas desrespeitosas. Estudei todas as horas para chegar a ser um profissional digno, financeiramente autossuficiente. Teve algum impacto: graduei-me como o melhor estudante em minha escola secundária, o melhor estudante de engenharia do país e consegui um MBA e um PhD em uma prestigiosa universidade dos EUA. Mas a experiência me tirou o apetite por arriscar como empreendedor e me levou a depender do emprego de terceiros.

Espero que a estes jovens não se lhes derretam os sorvetes e tenham que pagar à empresa. Talvez algum identifique um grande mercado e cria uma empresade distribuição ou uma para fazer concorrência à Frigo. O melhor aprende o que eu aprendi: que é melhor estudar e se formar para o futuro do que vender sorvetes nas praias.

Se fosse assim, o programa terá feito um serviço à sociedade ao tirar alguns dos 800.000 nem-nens [2] na Espanha de seu estupor.


http://cumpetere.blogspot.com.ar/

Notas

[1] Agradeço a Mayte Aparisi por me mostrar o programa e me sugerir escrever sobre ele

[2] Nem estuda, nem trabalha (Ministério do Emprego e Seguridade Social, 2013.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *