Reflexões sobre o futuro do capitalismo global

A explosão da bolha de endividamento soberano na Europa e a debilidade dos bancos alemães e franceses por seus altos níveis de exposição, assim como a persistência de altas taxas de desemprego e perda de confiança do consumidor nos EUA reanimaram a polêmica em torno dos prazos e a natureza da saída da crise econômica mundial. Será somente uma postergação dos prognósticos otimistas quanto ao início da recuperação? Verifica-se a predição de que a recuperação tem o formato de “W”? Sentimos a vertigem da “queda livre” das economias centrais? Ou, mais apocalipticamente, assistimos ao início do declínio final do capitalismo tardio?
A explosão da bolha de endividamento soberano na Europa e a debilidade dos bancos alemães e franceses por seus altos níveis de exposição, assim como a persistência de altas taxas de desemprego e a perda de confiança do consumidor nos EUA reanimaram a polêmica em torno dos prazos e a natureza da saída da crise econômica mundial. Estamos simplesmente diante de uma postergação dos prognósticos otimistas do FMI e da OCDE quanto ao início da recuperação? Aproximamo-nos da verificação da predição de Nouriel Roubini de que a recuperação tem o formato de “W”? Sentimos a vertigem da “queda livre” das economias centrais que Joseph Stiglitz analisa em seu recente livro de mesmo nome? Ou, mais apocalipticamente, assistimos ao início do declínio final do capitalismo tardio que Santiago Becerra se aventura a observar em seu best seller: O crash de 2010? Não o sabemos, nem ninguém hoje pode assegurá-lo com absoluta certeza. Não obstante, podemos afirmar que existem evidências estruturais que nos permitem intuir que a crise de 2007, ainda não resolvida, reformulará profundamente o sistema capitalista global e a atual ordem econômica internacional. Vejamos.

Para iniciar esta reflexão, é necessário fazermos uma primeira pergunta que tem uma resposta muito complexa, mas que trataremos de simplificá-la concentrado-nos no essencial: como funcionava o motor econômico global até 2007? No pré-crise, esse motor era mobilizado por um único e potente “impulsor”: o insaciável apetite do consumidor estadunidense e a belicosidade do governo encabeçado por George W. Bush. Juntos geravam uma potente demanda global que se respaldava, no caso dos lares estadunidenses, em sua crescente riqueza como consequência do incremento sustentado pelo preço das casas e das ações e, no caso do gasto militar, no sustentado crescimento do déficit público. A expansão do consumo privado proporcionava o crédito em taxas baixas. Por sua vez, os bancos se financiavam no mercado de capitais com base na geração de sofisticados produtos financeiros, que, por sua vez, tinham como núcleo as hipotecas que eles mesmos geravam ao conceder os empréstimos. No caso do gasto público, o déficit era financiado pela emissão de títulos do Tesouro, que eram adquiridos por Bancos Centrais (fundamentalmente o chinês), fundos soberanos e investidores privados, todos eles em busca de ativos de reserva e proteção. O FED, por sua vez, gerava o circulante, emitindo os dólares necessários para lubrificar todo um sistema que funcionava a altas revoluções, impulsionado por exacerbados valores de hiperconsumo e cobiça. Em princípios de 2008, o “motor” global esquentou e entrou em colapso, iniciando-se a débâcle pelo “esvaziamento” da bolha das hipotecas subprime, seguido pela derrubada dos preços das casas e das ações. Para dar apenas algum exemplo desse consumismo desatado, na Espanha as pessoas trocam (ou trocavam) de celular a cada 2,5 meses e nos EUA trocam de carro a cada 2,5 anos. Isso, mais que absurdo, é financeira e ambientalmente insustentável.

Ao eclodir a crise em 2007, todo este perverso mecanismo de indução de hiperconsumo “explodiu” e essa explosão gerou mudanças profundas na economia mundial. Em primeiro lugar, desde seu início a crise nos EUA destruiu aproximadamente 14 bilhões em riqueza, cifra similar ao Produto anual desse país, e se destruíram mais de sete milhões de postos de trabalho. Essa riqueza não se regenerará porque era fictícia, foi estruturada com base em sofisticados artifícios financeiros e “desapareceu”. Em consequência, o consumo dos lares estadunidenses – que explicam 70% do Produto – baixou vários escalões e hoje constitui o ponto de partida da recuperação econômica. O mesmo acontece na Europa, a repentina riqueza foi substituída por uma enorme dívida que em muitos dos países da CEE duplica e até triplica o PIB. Mais grave ainda que nos EUA, no velho continente o desemprego oscila entre 10 e 20% e tenderá a crescer no próximo quinquênio como consequência dos “brutais”, porém inevitáveis, planos de ajuste cuja implementação, em diferente grau, se iniciou nos países da CEE.

Em segundo lugar, gerou-se uma profunda mudança cultural no consumidor estadunidense e europeu. Os níveis de consumo se haviam exacerbado de tal forma que em 2007 o endividamento dos lares norte-americanos significava 120% do PIB estadunidense. A destruição de riqueza e a perda de empregos geraram uma mudança sensível e duradoura na relação poupança-consumo. Penso que esta mudança perdurará por muitos anos. De acordo com Wesley Hutchinson, professor de Marketing de Wharton, “nos próximos anos o consumidor aprenderá a se comportar de maneira mais frugal e não abandonará essa atitude no curto prazo ainda que a economia se estabilize”. Em consequência, presenciaremos por um tempo um capitalismo austero e, portanto, economicamente deprimido. As baixas taxas de crescimento e as altas taxas de desemprego que se instalaram nos EUA e na Europa permanecerão por um longo período de tempo. Ademais, as empresas têm dado resposta à contração da demanda global com profundos planos de reestruturação, ancorados na redução de pessoal. Em consequência, o alto nível de desemprego se transformou em um problema estrutural e, portanto, ingressamos em um mundo liderado por um sistema capitalista central com alto grau de rigidez na geração de novos empregos.

Em terceiro lugar, independentemente da aprovação da reforma financeira de Obama, não voltaremos jamais a um processo de aquisição de risco com os níveis de irresponsabilidade que caracterizaram os primeiros anos deste século. Portanto, não existirá por muitos anos uma concessão de crédito relevante por parte do setor financeiro em favor dos indivíduos (mercado hipotecário e crédito ao consumo) nem em favor das pequenas e médias empresas, que estimule de forma importante a demanda global. Em outras palavras, a “recuperação” não tem ainda um correlato claro na economia real e produtiva.

Diante deste panorama nas ec[o->www.carlosgarramon-reflexiones.blogspot.com]nomias centrais, as economias emergentes da Ásia e da América Latina, fundamentalmente os BRICs, mas também as economias menores como o Peru, o Uruguai e a Malásia, entre outras, estão assistindo a um fenômeno de sinal contrário. Sustentadas pelo preço alcançado pelas matérias primas, a maioria dessas economias instrumentaram políticas anti-cíclicas orientadas ao estímulo do consumo interno dentro dos níveis de endividamento e déficit fiscal razoáveis, no marco da exitosa política de acumulação de reservas. A China, com um plano de incentivos de 750 bilhões de dólares que, corretamente administrado e efetivamente trasladado para apoiar o consumo e as pequenas empresas, se transformou no motor da economia global: seu Produto cresce a 9% e suas exportações cresceram 50%. Trema a China e se desmoronam as bolsas, como aconteceu com as reações diante de revalorização do Yuan (gradual e administrada).

Produz-se, assim, uma recuperação débil e sinuosa nos países centrais e um crescimento vigoroso em grande parte da Ásia e da América Latina: segundo a CEPAL, um crescimento de 4% para 4,5% na AL em 2010. A melhora econômica será encabeçada pelo Brasil com taxas próximas a 7%, seguido de Uruguai e Peru, que se aproximam de 6%.

Esta dicotomia se inscreve no marco de uma nova ordem econômica internacional centrada em um poderoso eixo: China-EUA. A evolução deste eixo no político, comercial e monetário irá graduando a evolução da economia mundial por muitos anos e em consequência do ritmo e do prazo da recuperação.

(*) Engenheiro Agrônomo da Universidade da República Oriental do Uruguai, Mestre em Economia Agrária pela Universidade Católica do Chile, PHD(C) em Economia Agrária pela Universidade da Califórnia, Campus de Berkeley. Funcionário e consultor na OEA, ONU, FAO, FIDA, BID e Banco Mundial. Atualmente Presidente do Promesur Consulting Group e autor do blog [www.carlosgarramon-reflexiones.blogspot.com->http://www.carlosgarramon-reflexiones.blogspot.com]

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