A grande crise global que começou nos EUA com o colapso da especulação imobiliária gerou a necessidade de que o Estado interviesse para nacionalizar algumas grandes empresas financeiras e socializar suas perdas. Trata-se de um socialismo de resgate “a nível de superfície”. Não sabemos se será suficiente para remediar os excessos do capitalismo, mas parece que um mundo novo está surgindo no horizonte; um mundo no qual o capitalismo e o socialismo serão complementares.Quando a União Soviética se desmoronou, e com ela o modelo de Socialismo de Estado que tinha alimentado a esperança de muitos ao longo do século XX, um sociólogo russo amigo me disse, com palavras que nunca esquecerei: “A Guerra Fria era um tango dançado por um casal. Um dos dançarinos caiu. Quando você acha que o outro vai cair?” Não ficou claro se ele falava da Rússia e dos Estados Unidos, ou dos sistemas que ambos os países representavam: comunismo e liberalismo, ou se preferir, socialismo e capitalismo. Diante de tanta perplexidade, tive a idéia de responder com outra pergunta, talvez um pouco sarcástica: “Na sua opinião, foi o comunismo que arruinou a Rússia ou foi a Rússia que arruinou o comunismo?” Até agora, nem meu amigo, nem ninguém, soube dar uma resposta satisfatória àquela pergunta. No entanto, dezoito anos após o final da Guerra Fria, a economia norte-americana está sofrendo uma grave crise que põe em risco todo o sistema capitalista mundial.
Mas o tipo de crise que antes afetava alguns países da periferia, os chamados “mercados emergentes”, acabou por se desencadear com fúria no mesmo centro do sistema. Para salvá-lo, os principais representantes do capitalismo global –governantes, banqueiros centrais, tesoureiros e grandes investidores— lançam mão de todos os instrumentos estatais disponíveis. Em poucas palavras, as próprias elites do grande capitalismo querem que o Estado se encarregue das dívidas impagáveis, dos bancos que foram à falência, dos valores depreciados e dos bens de capital muito desvalorizados que o mercado livre é incapaz de absorver sem ficar paralisado. Em resumo: trata-se de socializar as perdas.
Há muito tempo, o louvado economista canadense-norte-americano John Kenneth Galbraith salientou, no seu excelente estilo habitual: “Nos Estados Unidos, o único socialismo respeitável é o socialismo para os ricos”.1 Hoje, poucos anos depois de sua morte, cumpre-se a profética sentença. Pareceria que, no Norte, o socialismo do século XXI não é bolivariano, e sim washingtoniano –não se trata de um socialismo igualitário, senão de um socialismo financeiro e de resgate. Ele não é descamisado nem usa tênis; ele veste terno de Hermenegildo Zegna e calça sapatos de Salvatore Ferragamo.
Por enquanto, os Estados Unidos estão oferecendo ao mundo um espetáculo dramático em vários atos que apenas começou. O que torna esse drama mais contundente é a coincidência da crise financeira com as iminentes eleições nacionais que vão decidir os mais altos cargos administrativos.
Em um dos últimos episódios do teatro político, o muito criticado presidente Bush se reuniu com os dois candidatos à presidência, com os líderes parlamentares dos partidos majoritários e com um grupo de funcionários do Estado; todos eles, franzindo o cenho, pronunciando graves advertências e insistindo na necessidade imperiosa de agirem em estado de emergência. Os nomes desses funcionários passaram a ser conhecidos mundialmente, como se eles fossem estrelas do cinema ou jogadores de futebol: além de Bush —cujo nome começa, inevitavelmente, a fazer parte do passado—, cada vez é maior o protagonismo de Hank Paulsen, Ben Bernanke, Nancy Pelosi, Harry Reid e, claro, dos candidatos Barak Obama e John McCain. A mensagem que parte dessas esferas é simples e clara: “Temos que aprovar imediatamente um plano de resgate pelo qual o Estado deve adquirir, com dinheiro dos contribuintes, os títulos e as ações ruins que hoje paralisam o crédito e, conseqüentemente, toda a atividade econômica. Não gostamos desse plano, mas ele é necessário para a reanimação de nossa moribunda economia”. Os leitores aficionados à história argentina com certeza se lembram das palavras de Sarmiento: “Em questões de governo, as coisas devem ser feitas; mal ou bem, mas devem ser feitas”. E os entusiastas da teoria política se lembrarão de todas as alegações a favor do estado de emergência, da pronunciada por Thomas Hobbes à pronunciada por Carl Schmitt.
No entanto, o socialismo de resgate —ou melhor, a respeitável intervenção nos mercados do respeitável Secretário do Tesouro e ex-executivo da firma Goldman Sachs de Wall Street, Henry Paulsen, com a ajuda de um respeitável ex-economista da Universidade de Princeton e especialista nada menos que na Grande Depressão dos anos 30, Ben Bernanke, atual presidente do Federal Reserve— encontrou forte resistência na Câmara dos Deputados, onde o plano foi rejeitado em primeira instância e após uma votação apertada. A reprovação não proveio do segmento que, nos Estados Unidos, é chamado de “esquerda” e que, na verdade, é a ala liberal do Partido Democrata; ela proveio da ala direita do Partido Republicano, ou seja, do partido governista. Sua mensagem foi tão clara quanto radical: “Deixemos que o mercado assuma seus erros. O Estado tem que ficar de fora”. Esse argumento repete, quase verbatim, o conselho de Andrew Mellon, outro Secretário do Tesouro, diante da crise bancária de 1929-1932: “Liquidem e liquidem”. Algo assim como: “quem tiver que falir, que vá à falência”. O que aconteceu logo depois é parte da história: primeiro, a Grande Depressão, que durou muitos anos, até que a Segunda Guerra Mundial pôs em marcha a grande estrutura industrial norte-americana. Por fim, alguém fez com que os deputados entendessem que quando a embarcação sofre uma séria avaria, ela não afunda de maneira parcial, mas afunda na sua totalidade; e que aquele que não aprender as lições da história, está condenado a repeti-la. A lei de resgate foi aprovada, com modificações, em uma nova votação, e foi sancionada no dia 3 de outubro de 2008. Temos que marcar esse dia como a data de nascimento do socialismo de resgate.
No contexto atual, o “socialismo no estilo norte-americano” provém de uma alta elite capitalista e pragmática, enquanto a suspeita e a resistência provêm dos segmentos populares que ainda defendem ardentemente o fundamentalismo de mercado, e dos segmentos populares mais amplos que já sofrem a redução de suas aposentadorias, que têm seus empregos ameaçados, que têm um poder aquisitivo cada vez menor, que temem ficar doentes por não possuírem seguro médico, e que têm poucas esperanças de que seus filhos e netos prosperem. À medida que a crise avançar, é possível que a resistência contra os “ambiciosos de Wall Street” se afaste do âmbito do populismo de direita e mude para um setor mais progressista. Mas não há certeza sobre isso.
Por enquanto, à forte crise econômica se acrescenta uma séria crise de liderança. Não sem algumas concessões, a elite bipartidarista pôs em marcha seu plano de resgate, com a esperança de conseguir um respiro até despois das eleições. Só a partir de então, e dependendo do resultado, poderemos ver o horizonte mais comprido do sistema global, sua reforma, e a recomposição geoestratégica do planeta. Mas agora convém que comecemos a enxergar esse horizonte e que nos perguntemos, em outro artigo, qual será o papel dos países do Sul no mundo que vai surgir após a crise. Neste ponto, vou me limitar a fazer uma observação final.
O novo socialismo de resgate descoberto pelos norte-americanos tem uma particularidade contraditória. Depois de tentarem desmantelar a estrutura do Estado e de vilipendiarem sua intervenção na economía durante um quarto de século, diante do grande tropeção financeiro e da primeira grande crise da globalização, os grandes capitalistas lançaram mão do Estado como fonte de salvação. No entanto, eles vão deparar com um Estado que tem pouca capacidade de gestão. Durante a presidência de Bush, o Estado norte-americano demonstrou ter uma péssima eficácia em matéria bélica (a ocupação do Iraque e a guerra no Afeganistão são provas contundentes), em matéria de mobilização diante dos desastres naturais (a destruição da cidade de Nova Orleans pelo furacão Katrina), em matéria de manejo racional do gasto público, em matéria de seguros de saúde, e em muitos outros aspectos. Depois da aprovação do pacote de resgate, um verdadeiro “abraço de afogados”, o país vai precisar da mão firme de um verdadeiro reformista que possa reorganizar o Estado –alguém como Franklin Delano Roosevelt nos anos 30.
A esta altura dos acontecimentos históricos, é sabido que o socialismo não representa uma alternativa global ao capitalismo, mas parece cada vez mais evidente que ele é seu complemento necessário. Se bem que o capitalismo seja a locomotiva do crescimento e da prosperidade, é o socialismo que tem de governar os trilhos. Se um trem-bala não fosse suportado por trilhos, ele descarrilaria. Em um canto do mundo, há um país que não tem muita repercussão no resto, além de constituir um exemplo, e que no ano de 1990 sofreu uma crise financeira semelhante com a que os Estados Unidos atravessam hoje. Trata-se da Suécia, onde o Estado aplicou um plano de resgate financeiro, com intervenções de corte “socialista” rápidas e eficazes. Mas há muitos anos que a Suécia pratica um socialismo que funciona como complemento de sua vigorosa economia capitalista. Será que está na hora de levar novamente em consideração o modelo escandinavo? Por via das dúvidas, e falo seriamente, eu comecei a fazer aulas de sueco. Jag talar och skriver liten svenska.(2)
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1) No original: “In America the only respectable type of socialism is socialism for the rich.”
2) Tradução: Falo e escrevo algumas coisas em sueco.
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