A gestação de um novo paradigma socioeconômico inclui como elemento essencial uma política distributiva orientada para uma busca de uma maior igualdade e justiça social.
A fase econômica contrativa iniciada em nível global na metade da década de 1970 se caracterizou por uma queda geral dos níveis de emprego e de investimento. A isso se agregou, desde o ponto de vista institucional, uma erosão do conjunto de regras e mecanismos inerentes ao paradigma “fordista” de regulação socioeconômica característico da fase de alto crescimento de pós-guerra, no qual as organizações de trabalhadores eram importantes atores. Os sindicatos de trabalhadores perdem, a partir de então, parte de seus membros e boa parte de sua influência, tanto na resolução do conflito distributivo e determinação dos salários, como sobre a evolução social em geral. O aumento da desocupação pressiona a baixa dos salários, que se estancam ou declinam, provocando uma universal queda da participação dos assalariados na renda nacional. Por outro lado, aumenta a participação dos lucros e outros rendimentos não-salariais. A desregulação financeira, a liberalização dos movimentos internacionais de capital e a financialização geral das economias incrementam particularmente as rendas financeiras. A deterioração da distribuição funcional da renda – isto é, a queda da renda dos assalariados em relação à renda de rentistas e capitalistas – é um dos fatores fundamentais por trás do quase universal aumento da desigualdade na distribuição da renda desde meios da década de 1970.
A conclusão a que chega um detalhado estudo sobre as causas do aumento geral da desigualdade é que os fatores causais principais têm sido a liberalização dos movimentos internacionais de capital e a desregulação do mercado de trabalho [1]. Essas políticas aprofundaram as tendências à deterioração da distribuição entre capital e trabalho inerentes à fase econômica contrativa, agravando o efeito de redistribuição regressiva da renda.
Uma característica generalizada do aumento da desigualdade nesta etapa tem sido o aumento sem precedentes da renda relativa dos ultraricos. A porção de renda total recebida pelo 1% mais rico se duplicou em uma quantidade de países ricos desde meados dos anos de 1970, com Estados Unidos como o exemplo mais característico [2]. Essa é a troca mais notória na distribuição da renda nas últimas décadas: a renda se concentrou nos centis mais altos, praticamente a expensas dos demais.
Outra maneira de ver a redistribuição da renda a favor dos segmentos mais altos é desde a perspectiva da distribuição entre as classes. No caso característico dos Estados Unidos, constata-se que o notável aumento da desigualdade nesse país se deve exclusivamente ao aumento da desigualdade de renda entre a classe dos rentistas e capitalistas e o resto da sociedade [3]. Essa quebra abismal entre os ultraricos e o resto da população é a característica diferencial básica da distribuição da renda na América Latina.
As políticas de liberalização de movimentos internacionais de capital e de “desregulação do mercado de trabalho” (eufemismo para “eliminação de direitos sociais”) não foram as únicas medidas pró-cíclicas de política do período neoliberal. A política tributária também acompanhou a geral tendência regressiva das políticas econômicas. Como quase todos os demais aspectos da política econômica e social, os efeitos da política tributária da fase contrativa foram no sentido de agravar a inerente deriva para a desigualdade gerada pelo ciclo. No caso da América Latina, por exemplo, as reformas tributárias introduzidas durante o período trasladaram em geral a carga de impostos dos grupos de alta renda para as classes médias e os pobres. Um amplo estudo da literatura sobre incidência de impostos conclui que só em 13 de um total de 36 países os sistemas tributários eram progressivos – os restantes eram regressivos ou proporcionais [4]. Concluem também que a progressividade dos impostos diminuiu em vários países em desenvolvimento a partir das reformas fiscais introduzidas.
Uma nova fase expansiva deveria reverter esse prolongado processo de redistribuição regressiva. Um novo regime de crescimento implica necessariamente a constituição de um novo modo de regulação distributiva e de geração de demanda agregada. Um novo modo de regulação da etapa expansiva deveria estabelecer um novo conjunto de regras, mecanismos e instituições distributivamente progressivas, capazes de sustentar o desenvolvimento do novo paradigma tecnológico “digital”, baseado nas tecnologias da informação e comunicação [5]. Em termos gerais, todas essas formas de regulação tendem à incorporação ao corpo político e social dos amplos grupos sociais marginalizados e semimarginalizados na fase contrativa.
As ferramentas político-econômicas básicas da regulação são o orçamento público e a inovação institucional. Tanto a política de gastos como de rendas públicas têm efeitos redistributivos. A política econômica dispõe de toda uma panóplia de instrumentos, tanto quantitativos (impostos, transferências, gasto social, etc) como qualitativos (reformas agrária e de recursos naturais, reforma educativa, previdenciária e pensões, etc) para influenciar a maneira em que o crescimento econômico beneficia os distintos grupos sociais.
Do lado das rendas públicas, é inerente à fase expansiva a reversão do generalizado papel regressivo da tributação, e a gestação de novas formas progressivas e eficazes de tributação, que tenham a capacidade de aumentar o papel distributivamente progressivo do orçamento público. Do lado do gasto, o orçamento público tem também efeitos distributivos importantes. Segundo a maneira em que é concebido, o gasto em infraestrutura – por exemplo, o destinado à infraestrutura elétrica, às comunicações ou ao transporte – tende a beneficiar certos grupos sociais e de renda mais que outros. Os investimentos em programas de (re)distribuição de terras e outros ativos produtivos, e a promoção de formas associativas de produção e de crédito, são outros tantos exemplos de gasto público redistributivo. De todas as formas de gastos do governo, não obstante, as que mais direta e rapidamente diminuem a desigualdade e a pobreza são as transferências monetárias diretas, como os subsídios à maternidade e à infância [6].
Em suma, uma política socioeconômica congruente com um novo período expansivo e com a gestação de um novo paradigma socioeconômico inclui como elemento essencial uma política distributiva orientada para a busca de uma maior igualdade e justiça social. Por essa razão, as estratégias dessa nova fase deverão necessariamente contar com um conhecimento preciso e detalhado da geração e distribuição de renda, de maneira a permitir um desenho cuidadoso das políticas redistributivas e seu minucioso seguimento ao longo do tempo.
Notas
[1] G. Cornia (2004) “Inequality, Growth, and Poverty: An Overview of Changes over the Last Two Decades”, G. Cornia (comp.), Inequality Growth and Poverty in an Era of Liberalization and Globalization, Oxford University Press, Oxford.
[2] Ver, por exemplo, A. B. Atkinson y T. Piketty (comps.) (2007) Top Incomes over the Twentieth Century, Oxford University Press, Oxford.
[3] E. N. Wolff e A. Zacharias (2007) “Class Structure and Economic Inequality”, Levy Economics Institute Working Paper No. 487.
[4] K.-Y. Chu, H. Davoodi e S. Gupta (2004) “Income Distribution and Tax and Government Social-Spending Policies in Developing Countries”, en: G. Cornia (comp.) Inequality Growth and Poverty in an Era of Liberalization and Globalization, Oxford University Press, Oxford.
[5] A mudança de paradigma parece insinuar-se mesmo no interior do Fundo Monetário Internacional, principal órgão de controle da ortodoxia econômica global. Um estudo recente considera agora “geralmente benigno” o impacto das políticas redistributivas — ver: J. Ostry, A. Berg, e C.G.Tsangarides (2014) “Redistribution, inequality and growth”, IMF Staff Discussion Note (SDN) No. 2.
[6] Ver, por exemplo, E. Goñi, J. López e L. Servén (2008) Fiscal Redistribution and Income Inequality in Latin America, Policy Research Working Paper 4487, Banco Mundial, Washington.
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