Nosso clima: O difícil caminho rumo à soberania planetária

O acordo internacional sobre o clima, firmado em Paris por 195 nações, é um primeiro passo dado pela humanidade inteira para prevenir e mitigar os efeitos nefastos do crescimento econômico e populacional sobre o meio ambiente. Diante das dificuldades intrínsecas a toda ação coletiva por um bem comum, o acordo aponta para conscientizar a opinião pública e para construir uma nova subjetividade solidária.

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“…Há dois mil e trezentos anos, Aristóteles observou que “o que é comum para a maioria é, de fato, objeto do menor cuidado. Todo o mundo pensa principalmente em si mesmo, raras vezes no interesse comum.”

No final de ano de 2015 firmou-se em Paris um acordo entre 195 países, destinado a diminuir e mitigar o  impacto nocivo da atividade humana no clima do planeta. Em resumidas contas, trata-se de evitar um aquecimento da atmosfera terrestre que pode por em perigo a vida não só humana mas de muitas outras espécies e degradar de forma irreversível o meio ambiente.

Os representantes que assinaram o acordo fizeram-no como um marco fundamental na história.  Louvaram a perícia dos diplomatas em evitar crispações e enfrentamentos entre diversos interesses nacionais e, assim, chegar a um compromisso que fosse satisfatório para todos. De sua parte, os críticos do acordo – que compartilham o desejo de frear a deterioração ambiental do planeta – sustentam que não é mais que uma expressão de princípios e que, como outras boas intenções, não fazem mais do que pavimentar o caminho para o inferno. “Os princípios são bons”, dizia com cinismo Napoleão, “mas não nos obrigam a nada”.

Pude examinar os termos e as cláusulas do acordo em seus méritos substantivos, e posso afirmar que não é nem tanto nem tão pouco. Se fossem cumpridos os termos do acordo tal como estão, no melhor dos casos se desaceleraria o ritmo para o qual a humanidade marcha para um desastre. Muito depende de saber como funciona o clima, tema sobre o qual há, todavia, bastante incerteza. Mas depende também do que possa suceder no futuro próximo. Trata-se do começo de uma revolução tanto no sistema energético sob o qual vivemos como nas políticas públicas que o apoiam, ou se trata de mudança de um acordo de papel que promete mais do que é capaz de produzir? Tudo depende da ação a tomar pelas distintas dirigências nacionais e pelas dirigências multinacionais. Como canta a bela expressão italiana que rima como um verso: “Tra il dire e il fare c’è di mezzo il mare” (entre o dizer e o fazer há um mar no meio).

É difícil convir em um enfoque comum frente a riscos incertos em um futuro que, para nossas curtas vidas pode ser, todavia, longe. É algo assim como redigir um texto a favor de nossos herdeiros e de seus herdeiros também. E, não obstante, 195 países o fizeram. Há mais: comprometeram-se a agir individualmente e em conjunto para alcançar metas consentidas e mensuráveis. Os países ricos se comprometeram a ajudar financeira e tecnicamente os mais pobres. E todos – ricos e pobres – se comprometeram a manter o aumento da temperatura mundial em menos de 2 graus centígrados.

Até aqui, tudo bem, mas vejamos agora as carências. É evidente que não é nem um tratado nem um contrato. Há mais aspiração que obrigação referendada com uma negociação de fundos e protegida com sanções acionáveis.  Por exemplo, não se põem limites à emissão de gases em barcos e em aviões. Não existe um mecanismo para estabelecer um preço internacional do carbono. Os países só se comprometem a se manterem mutuamente informados de suas ações e a manter planos transparentes.  É algo assim como a avaliação de pares em qualquer disciplina científica, em que circulam papers entre os especialistas. Em caso de descumprimento ou fraude, não há outra sanção que a desaprovação moral.  Pior ainda, no caso pouco provável do cumprimento estrito do acordo por parte de todos não se chegaria a frear o aquecimento em menos de dois graus.

Dadas estas severas limitações, vale a pena levar a sério o acordo de Paris? Para responder a essa pergunta, e dada minha caracterização do acordo, imaginarei os 195 países participantes como se constituíssem um departamento acadêmico de uma universidade prestigiada. Faço-o em parte por experiência própria e em parte porque como sociólogo me interessa a dinâmica de ações coletivas.

Cada país de todos os assinantes deverá revisar seus planos e submetê-los à avaliação de seus pares. O monitoramento e a transparência desses planos será muito maior que os que existem agora. Os países emergentes que mais emitem (China e Índia) se incorporam a esse sistema. Poderíamos qualificar o sistema como um modelo de “aspirações monitoradas”. Mais importante ainda, todos se comprometem a produzir um plano de redução de emissões e submetê-lo a exame de pares. Nenhum dos assinantes poderá dizer que não lhe importa não poder cumprir com as metas. Com uma exceção: sob um governo republicano, os Estados Unidos poderiam se “eximir” desse exame e, assim, torpedear os acordos. Em tal caso, o resto do mundo com a China na cabeça deveria lhes dizer que, depois de 50 anos de se considerar primus inter pares e, portanto, superiores, já não o são. O único que lograriam com essa atitude é que seus amigos já não lhe tenham confiança e seus inimigos já não lhe tenham medo.

Eu me colocarei agora em posição de advogado do diabo com argumentos fáticos e teóricos que alimentam as dúvidas e o ceticismo. Entre os argumentos fáticos, direi que nos últimos 25 anos de negociações internacionais sobre o clima, tanto a emissão de dióxido de carbono como o estoque de carbono acumulado na atmosfera, e a emissão per capita tem aumentado perigosamente. Se se tivessem tomado ações preventivas, então o desafio atual não seria tão tremendo. É certo que a emissão de carbono por unidade produtiva (exemplo: uma fábrica supermoderna com baixas emissões) diminuiu nos últimos anos, mas o crescimento econômico total do mundo acumulou a incidência dessas melhoras individuais. A somatória é negativa. O que nos leva a uma conclusão que vai contra todas as suposições e a ideologia das ciências econômicas e do mundo dos negócios: “tem que crescer a todo custo”. Tal suposição se faz cada vez menos sustentável.

Para sair desta encruzilhada, há dois caminhos: o primeiro é formular planos realmente ambiciosos, e o segundo, fazer investimentos massivos na tecnologia alternativa e inovadora. Em um horizonte mais longínquo, agregaria um terceiro: pensar em modelos econômicos com uma definição de “crescimento” muito distinta da que manejam hoje. Uma corrente heterodoxa do pensamento econômico está representada por Elinor Ostrom, prêmio Nobel de Economia do ano de 2009, que, por meio de sua obra “O governo dos bens comuns: a evolução das instituições de ação coletiva” (1990), evidencia que dentro de certos grupos sociais é possível que exista a cooperação e a responsabilidade coletiva sobre a exploração dos recursos naturais. Há grupos que desenvolveram mecanismos e instituições que não respondem à logica privatizadora e do Estado. Mas é uma posição minoritária com exemplos marginais.

A solução seria algo assim como se em nível mundial e em relação ao clima, se pudesse armar uma espécie de “Programa Apolo”, que fizeram os Estados Unidos viajar a Lua. Tal projeto implicaria duas coisas: um enorme esforço tecnológico e um mecanismo de consenso acionável que denomino “soberania planetária”.

Sobre o esforço tecnológico não me deterei neste ensaio, mas tenho esperança de mudanças decisivas no ritmo febril de inovações tecnológicas em que estamos embarcados, tema sobre o qual existe uma abundante e positiva bibliografia. Eu me deterei em outro mecanismo: no da ação coletiva e consenso acionável, sobre os quais se fundaram vários modelos teóricos nas ciências sociais.

A armadilha ou paradoxo social deste acordo coletivo pode se resumir nas palavras do teórico e comentarista Barry Schwartz (“Tyranny for the Commons Man” em The National Interest (julho/agosto 2009, em inglês):

“Como escapar do dilema em que muitos indivíduos agindo racionalmente em seu próprio interesse podem, em última instância, destruir um recurso compartilhado e limitado, incluindo quando é evidente que isso não beneficia ninguém a longo prazo? […] Nós enfrentamos agora a tragédia dos comuns globais. Há uma Terra, uma atmosfera, uma fonte de agua e seis bilhões de pessoas compartilhando-as. Deficientemente. Os ricos estão super-consumindo e os pobres esperam impacientes por unirem-se a eles.”

O que é certo para indivíduos é também certo para países, quando cada um age em prol de seu próprio interesse, mas todos se arruínam coletivamente. Essa formulação moderna da antiga teoria de Thomas Hobbes foi feita pelo teórico G. Hardin em 1968 (seu artigo foi publicado originalmente sob o titulo “The tragedy of Commons”, na revista Science, v. 162 (1968), pp. 1243-1248. Tradução de Horacio Bonfil Sánchez. Gaceta Ecológica, núm. 37, Instituto Nacional de Ecología, México, 1995.) Desde então, todos os analistas que se atêm à ação humana não encontraram uma solução satisfatória dentro do esquema do homo oeconomicus ou da escolha racional. Por esse motivo, e desde Hobbes, a teoria politica se viu obrigada a buscar uma solução fora desse esquema, e nomear um ator por cima dos indivíduos que se imponha a seus motivos diversos em nome de uma racionalidade superior e coletiva. Esse ator é o Estado. Segundo esse raciocínio, quando a ação individual leva a uma crise, em geral um conflito não resolvido de todos contra todos, só a imposição autoritária “desde cima” lograria terminar com o impasse e cortar o nó górdio.  Quem exerce essa decisão é soberano, e o exercício reconhecido por todos os atores desta capacidade “em última instância” se chama soberania (ver a respeito Teologia política. Quatro ensaios sobre a soberania, de Carl Schmitt. Editada por Struhart & Cia, traduzida por Francisco Javier Conde e prologada pelo mesmo Schmitt).

Agora bem, até há pouco a soberania era prerrogativa exclusiva dos Estados e reconhecida pelo direito internacional. Mas em uma era de globalização intensa, os problemas comuns a todos os Estados superaram a capacidade de cada um deles de resolvê-los, e minguou a soberania. Em nível internacional, a “tragédia dos comuns” está em plena vigência. Só poderia ser superada por meio de um governo mundial ou um superestado. A falta de tal Leviatã em exercício de uma soberania planetária, só uma ou duas potencias exercendo o monopólio ou oligopólio do poder decisório e agindo de fato como força policial do mundo poderiam estabilizar a situação. Essa foi a “solução” do dilema durante a Guerra Fria e por um breve período depois do fim daquela geopolítica bipolar, com a supremacia supérstite dos Estados Unidos. Mas agora estamos em plena reconfiguração multipolar do mundo, com uma redução muito clara de soberania tanto nacional como supranacional.

A experiência mostra que um conjunto de nações sem um governo central por cima deles é incapaz de enfrentar crises serias em tempos difíceis. Em meus artigos sobre a Europa, tratei de demonstrar tal impasse. As vezes uma séria ameaça externa leva à consolidação de um poder central. É o caso de uma situação de guerra diante de um inimigo identificável e declarado, com intenção de atacar. Mas há outros perigos e desafios que levam a uma crise seria sem provocar uma reação solidária e “hobbesiana”. Nesse caso, o “inimigo” se apresenta de forma catastrófica e espetacular quando é demasiado forte.

Frente ao clima, será possível uma ação coletiva eficaz na ausência de uma soberania planetária? A dramaticidade de uma chamada tragédia dos comuns reside em que o inimigo principal neste campo somos nós mesmos, uma vez que criamos um Frankenstein ambiental.

A novidade promissora dos acordos de Paris está na criação de mecanismos e protocolos de conscientização coletiva, com a consequente deslegitimação da subjetividade egoísta individual (necessitamos de uma nova subjetividade) e – coisa mais difícil – na possível deslegitimação de uma consciência coletiva meramente nacional. Não podemos sair de uma má globalização dando um passo atrás, como apregoam os nacionalismos furibundos e irrefletidos que hoje pululam cada vez que há uma crise aguda. Diante do desafio climático já não cabe mais o slogan “pátria ou morte”, mas outro muito mais em tom com nossa situação: “casa comum (como disse o Papa) ou morte”.

Em conclusão: o advogado do diabo tem argumentos convincentes mas, todavia, não ganhou a partida. Feliz Ano Novo.

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