Impostos e desigualdade

“A América Latina é a região do globo que mostra maior desigualdade socioeconômica como consequência do modo em que operam os mercados, mal regulados pelo Estado, e também da regressividade que resulta de seu débil sistema fiscal (em especial, de sua tributação). O autor analisa com um enfoque estrutural as circunstâncias que vinculam os impostos à desigualdade, assumindo os riscos que supõe delinear um breve quadro da situação para um subcontinente tão heterogêneo.”1. O impacto do sistema tributário sobre a desigualdade

Em geral, os impostos e o gasto público na América Latina melhoram muito pouco o nível de (in) equidade. A grande desigualdade imposta pelo funcionamento do “mercado” – apesar das regulações estatais que apontam para limitá-la por meio de políticas macroeconômicas, setoriais, laborais e outras ações distintas das propriamente fiscais – resulta apenas corrigida pela ação fiscal, isto é, pela arrecadação de impostos e distribuição do gasto público. Seu efeito costuma ser marginal: por exemplo, na Argentina se consegue baixar o índice que mede a desigualdade – chamado de Gini – de 0,51, que define o “mercado”, para 0,49 depois da arrecadação de impostos (em 2006). Esse índice reflete o nível de equidade de um país entre os extremos de uma absoluta igualdade (valor 0 do Gini) e a extrema desigualdade (valor 1); quanto mais próximo de 1, reflete-se uma situação de maior desigualdade, e quanto mais próximo de zero, uma mais equitativa.

Uma visão de longo prazo (e a situação em princípios de milênio)
[Coeficientes GINI de equidade de renda na AL e Cone Sul
(Argentina, Brasil, Chile e Uruguai) 1950-2002
(média por década)->http://opinionsur.org.ar/IMG/pdf/impostosedesigualdade.pdf]

Nos países mais avançados, a inequidade “antes dos impostos e transferências” estatais resulta apenas menor à da América Latina (com Gini entre 0,42 e 0,53, e Japão com um excepcional 0,34), mas – diferente do que ocorre na AL – diminui substancialmente como consequência da ação fiscal (o que explica a queda de nível de inequidade de Ginis entre 0,22 e 0,35).

2. Por que o aporte fiscal à correção da inequidade é tão limitado?

Em primeiro lugar, porque o nível de pressão fiscal é muito limitado na região (salvo o caso do Brasil); a estrutura tributária, muito regressiva; e os níveis de evasão/elusão, altos. O sistema tributário privilegia os impostos ao consumo e mostra um nível de carga muito débil sobre a renda e os patrimônios dos mais ricos.

Em segundo lugar, porque a própria estrutura do gasto não parece mostrar um traço progressivo suficiente, devido: i) ao peso dos serviços da dívida externa, nos países mais endividados; ii) às transferências a empresas privadas e subsídios orientados a setores sociais que não os necessitam; iii) às carências, ineficiências e “infiltrações” no investimento público; iv) ao limitado alcance e à insuficiente “progressividade” na oferta de bens públicos (educação, saúde e outros); v) à muito limitada eficiência do aparato de gestão estatal (e também dos Poderes do Estado, no nível político); vi) à própria ineficácia e “desvios” na gestão dos programas sociais redistributivos. Enfrentam-se, então, sérios desafios nestes campos, tanto do lado da renda quanto do lado do gasto público: se não se consegue “legitimar” entre amplos setores da sociedade (em especial, os chamados “setores médios”), o nível e a estrutura presentes do gasto público, será difícil que se possam encarar mudanças significativas que apontem para elevar a pressão fiscal e reformar a estrutura tributária (em um sentido progressivo). Brasil, Chile e Uruguai mostram um maior avanço relativo na região nestes campos.

3. Implicações em um processo de reformas fiscais, progressivas e sustentáveis

De um lado, consolidou-se na região – com muito poucas exceções – uma estrutura estatal degradada e ineficiente, “colonizada” por interesses corporativos de todo o tipo. Em particular, o Estado foi permeável ao poder de um setor privado crescentemente concentrado e transnacionalizado (a porcentagem de propriedade estrangeira em setores-chave da atividade econômica costuma ser muito alta) e periodicamente sujeito a fortes disputas pela hegemonia em seu seio, em muitos casos.

Foram registradas, ademais, em vários importantes países da região e com impacto variável, durante os períodos de “queda” das ditaduras e hegemonia neoliberal, severas redistribuições regressivas da riqueza de muito difícil reversão, principalmente por meio de: i) nacionalização massiva de passivos privados; ii) constituição de enormes dívidas públicas externas; iii) extensos processos de privatizações que transferiram, usualmente a “preço vil”, boa parte do patrimônio público acumulado pelas gerações precedentes (incluindo, no caso da Argentina, setores-chave como o de hidrocarbonetos e energia, e a entrega da exploração em condições extremadamente “frouxas” da pesca e da mineração; e iv) deterioração da educação pública. Estas regressivas redistribuições de riqueza tenderam a ampliar e consolidar as mudanças negativas no campo da renda (necessariamente vinculado à distribuição dos patrimônios).

Em terceiro lugar, deve-se destacar o que talvez seja o mais importante problema: as mudanças cultural-institucionais consolidadas, que parecem ter transformado sociedades com variada vocação igualitária em outras muito mais fraturadas, passivas e atemorizadas (sobretudo, frente aos perigos – reais ou imaginários – de instabilidade econômica). Pode-se verificar, a este respeito, que enquanto que os setores socioeconômicos especialmente beneficiados pela evolução de longo prazo descrita – os privilegiados – costumam trabalhar com eficácia para sustentar com rigor o status quo, as imensas maiorias que se beneficiariam com as mudanças possíveis não somente não costumam mobilizar-se para intentá-lo, mas que, inclusive, em muitos casos, atuam de um modo inverso ao usual nos países mais avançados (constituindo-se como a locomotiva dos setores minoritários).

Por último, as tendências da economia e da sociedade globais apresentam oportunidades, mas também sérias limitações para o desenvolvimento de processos reformistas progressivos em nossos países.

4. O que, então, se pode fazer?

Em primeiro lugar, seria necessário que as organizações sociais de todo o tipo começaram a se informar e atuar a favor da mudança, da continuidade do processo de crescimento econômico, com maior igualdade e mais e melhor democracia em nossos países. Uma alternativa nacional reformista requereria, ademais, além deste necessário esforço de esclarecimento e debate, que: i) uma ampla coalizão político-social reclame e respalde as mudanças necessárias; ii) possa reunir forte vontade nos mais altos níveis políticos, para iniciar e sustentar durante os longos tempos requeridos estas mudanças substanciais na distribuição de renda e também – até onde seja possível – de riquezas; e iii) certa vontade para chegar a compromissos que evitem as rupturas por parte dos setores privilegiados (acostumados a “não contribuir” na América Latina). Em escala regional, seria muito importante a consolidação do processo de integração e os efeitos de apoio, “contágio” e cooperação que poderiam potenciar os processos nacionais de mudança e as sinergias regionais possíveis.

Alguns temas-chave da agenda reformista irão requerer, ademais, de modo inescapável, ações em nível supranacional: trata-se dos casos, entre outros vários, da regulação financeira global pendente, do estabelecimento de uma autoridade tributária global, da eliminação (ou limitação substancial da margem de manobra) dos “paraísos fiscais”, e das ações eficazes e peremptórias necessárias em matéria ambiental. Para impulsionar esta agenda global, o avanço regional resulta também indispensável.

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*Economista argentino, membro do Grupo Fénix e pesquisador do CEFID-AR

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