Os negociadores continuam a trabalhar encarniçadamente para conseguir um avanço significativo na Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). O objetivo deles é alcançar um acordo até o final de 2008. Os países em vias de desenvolvimento deveriam adiar essa rodada moribunda até que os países ricos pudessem estabelecer um novo enfoque com base no compromisso de Doha de ser uma “rodada de desenvolvimento” destinada a favorecer os países mais pobres.Enquanto os líderes dos países ricos procuram puxar os negociadores para uma nova data limite, que marque o sucesso ou o fracasso do que se transformou no acordo mais iminente da história, os negociadores dos países em vias de desenvolvimento deveriam lembrar os motivos pelos quais as propostas em discussão precisam ser redesenhadas. Neste artigo, iremos analisar as previsões econômicas feitas pelo Banco Mundial e por outras instituições, e mostraremos quão limitados são os ganhos para a maioria dos países em vias de desenvolvimento e quão elevados poderiam ser os custos ocultos de um acordo. Com um lucro estimado de menos de 0,2%, uma redução da pobreza que vai atingir apenas 2,5 milhões de pessoas (abaixo de 1%), perdas de pelo menos US$ 63 bilhões com tarifas aduaneiras, e projeções de queda nos preços relativos das exportações, os países em desenvolvimento não têm muito a ganhar com a aceleração das negociações de Doha.
Em virtude da divulgação de um discurso grandíloquo sobre Doha e a redução da pobreza, é compreensível que o público ache que esse acordo trata exclusivamente da pobreza e do desenvolvimento. O Banco Mundial realizou sua projeção de lucro com base num “provável” acordo de Doha. Sob esse cenário (mais ambicioso do que as propostas que estão atualmente em discussão), o lucro global previsto para o ano 2015 é de apenas US$ 96 bilhões, dos quais só US$ 16 bilhões serão destinados ao mundo em vias de desenvolvimento. Há diferentes avaliações resultantes das projeções de Doha, mas todas elas apresentam a mesma ordem de magnitude.
Quanto aos benefícios previstos para os países em desenvolvimento, só uns poucos deles ficam com a maior parte do lucro. Segundo o Banco Mundial, estima-se que a metade do lucro total destinado aos países em desenvolvimento flua para apenas oito países: Argentina, Brasil (que espera receber 23 por cento dos benefícios dirigidos aos países em desenvolvimento), China, Índia, México, Tailândia, Turquia e Vietnã.
Alguns pesquisadores argumentam que esses números estão subvalorizados, em parte porque eles não incluem a liberalização do comércio de serviços. Porém, uma avaliação anterior do Banco sugere que isso acrescentaria muito pouco aos países em vias de desenvolvimento. O “cenário provável”, segundo esse padrão de liberalização parcial –uma redução de 50 por cento nas barreiras ao comércio de serviços-, prevê um lucro de apenas US$ 6,9 bilhões para o mundo em desenvolvimento, com 71 % do lucro total para os países ricos. Se somarmos a liberalização do comércio de bens à do comércio de serviços, o lucro projetado para os países em vias de desenvolvimento alcançará US$ 28,7 bilhões, sob um provável cenário de Doha.
Caso o lucro projetado seja menor do que o anunciado, então esses exercícios de avaliação ocultam grande parte das perdas. E trata-se de perdas consideráveis.
Sob o aspecto das negociações que trata do “acesso ao mercado não-agrícola” —ou produtos manufaturados—, o total de perdas com tarifas aduaneiras para os países em desenvolvimento poderia atingir US$ 63,4 bilhões, ou quase quatro vezes o nível de ganhos. Para muitos países em vias de desenvolvimento, o fato de rebaixarem fortemente as tarifas não só vai restringir sua capacidade de impulsionar a criação de novas indústrias para poderem se integrar à economia mundial, mas também vai limitar os fundos governamentais destinados a dar apoio a essas indústrias incipientes e a sustentar os programas sociais de combate à pobreza. Na maioria dos países em desenvolvimento as tarifas aduaneiras respondem por mais da quarta parte da receita tributária. Para os países mais pequenos, com economias menos diversificadas, a receita proveniente das taxas aduaneiras constitui a base das verbas públicas. Segundo o South Centre, sediado em Genebra, as tarifas respondem por mais de 40 por cento da receita tributária em República Dominicana, Guiné, Madagascar, Serra Leoa, Suazilândia e Uganda.
Um possível acordo também contribuirá a deteriorar as condições sob as quais os países em desenvolvimento exercem o comércio exterior; isto é, a relação entre os preços de exportação e os de importação. Este item é considerado um indicador crucial do grau em que um país em desenvolvimento avança na cadeia de valor da economia global, afastando-se da produção primária e introduzindo-se em atividades econômicas baseadas na manufatura ou no conhecimento. A partir da Primeira Guerra Mundial, as condições de intercâmbio comercial de muitos países em desenvolvimento têm piorado. A deterioração dessas condições pode agudizar os problemas na balança de pagamentos e torna ainda mais urgente a necessidade dos países diversificarem suas exportações.
No cenário de um possível acordo, os preços internacionais dos produtos agrícolas aumentam e os preços dos produtos manufaturados têm leve recuo ou não sofrem alteração. De acordo com o Carnegie Endowment for International Peace, essas mudanças nos preços têm efeitos negativos sobre as condições de intercâmbio comercial dos países em vias de desenvolvimento. O relatório aponta que para muitos países o aumento nos preços internacionais dos alimentos importados e dos bens agrícolas é compensado pela redução nos preços internacionais de suas exportações de manufaturas leves, tais como as peças de vestuário. Isso explica, em parte, a queda no bem-estar social e na qualidade de vida registrada em Bangladesh, África Oriental e o resto da África Subsaariana.
Para diversificar suas exportações, os países em desenvolvimento costumam se basear no exemplo das economias norte-americana e européia, e no caso mais recente das economias sul-coreana e chinesa. Esses países ampliaram suas exportações, além dos produtos primários e das manufaturas leves, e aos poucos abriram suas economias. Eles se introduziram estratégicamente no mercado mundial, protegendo suas principais indústrias exportadoras e visando fortalecê-las para que elas pudessem concorrer no mercado internacional.
Um exemplo disso é a fabricante chinesa de computadores Lenovo. A empresa foi criada pelo governo e foi protegida por muitos anos; recentemente, ela comprou a divisão de PC da IBM e virou líder mundial em produtos eletrônicos de alta tecnologia. A Acer Computer, de Taiwan, e a Hyundai e a Kia Motors, da Coréia do Sul, seguiram trajetórias de desenvolvimento a longo prazo semelhantes.
A aplicação de reduções tarifárias adicionais para produtos manufaturados e a regulação de serviços nos países em desenvolvimento, questões que estão sendo consideradas nas atuais propostas de Doha, farão com que seja mais difícil para esses países reproduzirem os esforços mencionados acima. Essa perda do chamado “policy space” (espaço para a formulação de políticas públicas) é a razão pela qual muitos países em vias de desenvolvimento consideram que as atuais propostas dos países ricos significam algo assim como: “façam o que nós dizemos, mas não façam o que nós fazemos”.
Um novo enfoque
A pobreza das negociações atuais indica que este é o momento oportuno para fazer uma “pausa” nos acordos comerciais. Entretanto, os países desenvolvidos deveriam assumir o compromisso de tornarem o sistema internacional de comércio mais favorável ao desenvolvimento. A seguir, apresentamos quatro passos que visam esse objetivo.
1.Implementar resoluções anteriores da OMC: Os Estados Unidos e a Europa deveriam concordar em acatarem aquelas resoluções da OMC que estabelecem que os subsídios ao algodão e ao açúcar violam as regras de intercâmbio comercial estipuladas no acordo anterior. Isso representaria um grande estímulo para os agricultores da África Ocidental e da América Latina, e seria um forte sinal para os países em desenvolvimento de que as nações desenvolvidas estão dispostas a respeitar as regras da OMC.
2.Tratar as questões relativas às commodities: Os países ricos deveriam levar a sério a proposta de muitas nações africanas para o controle das empresas globais que exigem preços injustos pelas matérias-primas utilizadas na produção agrícola e que lucram bilhões com a venda dos produtos finais. Durante a Rodada de Doha, as nações africanas têm apresentado numerosas propostas nesse sentido, visando o estabelecimento de planos para a gestão da oferta internacional de mercadorias, destinados a jogar os preços para cima e a frear o comportamento oligopolista das grandes empresas estrangeiras produtoras de commodities. Se a Rodada de Doha visar o desenvolvimento, essas propostas devem estar no centro da discussão.
3.Reconhecer o compromisso de dar tratamento especial e diferenciado: Os negociadores deveriam reconhecer o princípio de Doha de conferir “tratamento especial y diferenciado” aos países mais pobres. As nações desenvolvidas deveriam anular as patentes que impedem as nações pobres de fabricarem drogas genéricas mais baratas. Além disso, elas deveriam autorizar os países pobres a manterem certos alimentos básicos de suas economias locais —tais como o milho, o arroz e o trigo— isentos de liberalização comercial, como parte do compromisso de Doha de proteger aqueles “Produtos Especiais” que são importantes para o desenvolvimento rural, a segurança alimentar e a sustentação do setor agrário.
4.Compensar as perdas tarifárias e os custos de ajustamento: As instituições internacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, deveriam intervir e ajudar os países em desenvolvimento a cobrirem os custos de ajustamento, entre eles as perdas tarifárias e a requalificação da força de trabalho, até que as políticas apropriadas possam ser implementadas. O Mecanismo de Integração Comercial (Trade Integration Mechanism) do FMI tem essa finalidade, mas ele não dá muito espaço para a incorporação dos custos de ajustamento; além disso, o Fundo é freqüentemente criticado por introduzir mudanças adicionais nas políticas de ajustamento.