A transformação social exige esclarecimento e imaginação. Um olhar à significação e ao papel desempenhado por esses críticos elementos e para algumas das circunstâncias que condicionam “o compreender” e o “imaginar o futuro desejado”.
A transformação social (econômica, política, ambiental, cultural e todas as outras dimensões envolvidas) é uma marcha de longa data que, salvo cataclismos naturais ou induzidos, resulta ser de natureza permanente. Isso, por certo, não implica linearidade. Infinidade de casos de avanços, retrocessos, de inesperadas metamorfoses, balizam a história da humanidade. É que as transformações sociais são motorizadas por seres humanos em suas circunstâncias, diversos, singulares, com muito desigual poder de decisão e diferentes interesses a defender.
Antecipar como seguem os caminhos da transformação social é uma tarefa preditiva por demais incerta. Tantas variáveis em jogo, tantas diversas relações entre humanos, tão cambiantes circunstâncias e desigualdades, asseguram feitos inesperados, tendências cridas eternas que se quebram, constantes reacomodações, imposições por toda a parte, fundamentalismos que antagonizam, reações valentes e das outras, miradas aturdidas e pensamentos antecipatórios. Enfim, não é tarefa simples, senão complexa, sempre imperfeita, antecipar e lavrar caminhos novos. De todo modo, seja que o estejamos propondo ou não, permanentemente se estão abrindo e fechando sendas. Claro que não há quem não queira (cada um como parte minúscula desse todo), quem não deseje poder predizer ou orientar o devir das transformações sociais.
Em que nos apoiamos para fazê-lo? No conhecimento disponível (incompleto, em construção coletiva), em como o utilizamos para esclarecer e nos esclarecer, em nossas preferências ideológicas e teimosia para sustentá-las, nas organizações ou grupos de toda índole em que participamos e, pouco frequente, na capacidade maior ou menor de integrar à nossa perspectiva outros pareceres, outras interpretações, outros interesses de variada legitimidade.
Dentro de um conjunto mais amplo, podemos distinguir um par de elementos que são essenciais na tarefa de procurar incidir consciente e deliberadamente sobre o processo de construção de futuro: um se refere a compreender o melhor que se pode como é a presente dinâmica social (outra vez econômica, política, ambiental, cultural e demais); o outro, imaginar o tipo de sociedade desejada, pelo que estamos dispostos a investir boa parte de nossas energias.
O primeiro, “o compreender”, fala de conhecer a gênese e o desenvolvimento presente da dinâmica social (raízes, explicações, mecanismos), dispor de informação, submetermo-nos a um processo sem fim de esclarecimento pessoal e grupal para interpretar e avaliar condutas, fatos, processos.
A outra dimensão essencial do processo de construção de futuro, “o imaginar o desejado”, leva-nos a construir uma sorte de utopia referencial. Utopia no sentido de que é um lugar que ainda não existe, mas que desejaríamos que existisse, e referencial na acepção que possa nos servir de “norte” (ou “sul”) para nos guiar em um certo rumo.
Condicionantes para “compreender”
O processo de compreender processos que envolvem múltiplas variáveis e infinidade de relações entre atores sociais [1] exige escolher variáveis relevantes, selecionar certo tipo de agregação de condutas (no sentido de integrar condutas como se fossem meios significativos do que acontece na realidade), decifrar mecanismos de funcionamento social (manifestados ou encobertos) e apreciar suas consequências, efeitos e resultados. Tudo isso implica um esforço de relevamento e análise do que acontece; por que os fatos acontecem como acontecem e o quê produz esse específico acontecer. Daí que, quando aparecem camelôs simplificadores da política e da realidade socioeconômica ignorando complexidades e esgrimindo simplórias e falsificadas verdades apresentadas como indiscutíveis (servindo a interesses insustentáveis em campo aberto), não são poucos os seguidores sedentos de certezas que logram atrair. A impotência, a frustração, os ocultamentos confundem e abrem espaços para que alguns charlatães se criam emuladores daquele Alexandre Magno que, 333 anos antes de Cristo e diante de uma complexidade cuja resolução desconhecia, cortou com sua espada o nó górdio para se apropriar do vaticínio de uma lenda (conquistar a Ásia daqueles tempos).
Mas não só isso condiciona o compreender. Todo esforço de compreensão requer dispor de informação e, se bem abunda a informação que circula pelo mundo, há os que detêm o poder de selecionar e hierarquizar aquela parte do universo informativo que é afim a seus interesses legitimando-a como a mais relevante a ter em conta; o resto da informação que siga circulando, mas assegurando que não incida sobre grandes massas populacionais. Trata-se de não informar o que acontece, mas de apresentar um recorte intencionadamente enviesado do que acontece. Entre ocultamentos e próprios interesses, não são poucos os meios que desinformam, desorientam e manipulam a opinião pública, algo que não deveria surpreender dada a conhecida relação que vincula o poder econômico com os meios hegemônicos de comunicação.
Tampouco seria honesto ignorar a carga ideológica que cada um leva consigo e compromete sua objetividade. Os que são conscientes desse viés muito próprio da natureza humana procuram se erguer, até onde seja possível, por sobre os traços subjetivos que afetam a compreensão; outros, em troca, aceitam sem questionar interpretações configuradas por certos grupos de poder para favorecer encobertos interesses. Se bem trabalhar pelo bem-estar geral e não pelo privilégio com seus abusos seja louvável, não ajuda fazê-lo acudindo a tergiversações que terminam levando a cometer grossos erros estratégicos.
Condicionantes para “imaginar o desejado”
Um cenário de vida imaginada, desejada, quiçá possível mas sem dúvida incerta, faz parte do presente e, como tal, não só o passado mas também o futuro incide sobre encaramos e decidimos agir. Ali reside boa parte da significação de uma uma utopia referencial. A palavra utopia não evoca algo inalcançável como vulgarmente se crê, mas uma transcendental transformação pela qual vale lutar; a palavra referencial explicita que serve de guia e orientação para decisões estratégicas e cotidianas.
Como a utopia referencial se constrói com o benefício do desejado, as inconsistências, incertezas e contradições do presente podem ser abordadas com outra perspectiva e imaginar possíveis soluções. Essa construção é um trabalho de muitos, ainda que possa ser verbalizada ou apresentada por alguns.
Ao procurar conceber uma utopia referencial, movemo-nos entre dois perigosos extremos: de um lado, o voluntarismo, que peca pela ingenuidade e desconhece o peso específico dos condicionantes de toda realidade e, no outro extremo, um fatalismo esterilizante da criatividade e da determinação que cerra o passo ao arbítrio social e individual. Não obstante, é possível transitar por um caminho criativo sem cair em fatalismos nem em voluntarismos, aquele de livre, ainda que condicionado, arbítrio. Vale dizer, temos liberdade para escolher um futuro desejado mas essa liberdade, como outras, não é absoluta pela existência de condicionantes que seria arriscado e inefetivo ignorar.
Fica, assim, destacada a importância e a complementação que existe entre compreender o que acontece, identificar restrições e possibilidades, esclarecer o que desejamos, destacar para onde querermos nos dirigir, desenhar políticas e medidas que orientem a ação social, prover-nos de instrumentos de intervenção, temperar nossa determinação na ação implementadora e, ao longo do trajeto, confirmar os valores que, consciente ou inconscientemente, vêm conosco onde quer que avancemos.
Notas
[1] Oito milhões coabitamos neste planeta e números menores no nível de cada país mas, ainda assim, de escalas impossíveis de manejar sem considerar plenamente a todos.
Opinion Sur



