Encontro Mundial de Movimentos Populares

Seleção de parágrafos do discurso do Papa Francisco (em 15 de novembro de 2016)

Neste nosso terceiro encontro expressamos a mesma sede, a sede de justiça, o mesmo grito: terra, casa e trabalho para todos.

No nosso último encontro, na Bolívia, com a maioria de latino-americanos, pudemos falar da necessidade de uma mudança para que a vida seja digna, uma transformação de estruturas; além disso, do modo como vós, movimentos populares, sois semeadores de mudança, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas de modo criativo, como numa poesia; foi por isso que vos quis chamar “poetas sociais”; e também pudemos enumerar algumas tarefas imprescindíveis para caminhar rumo a uma alternativa humana diante da globalização da indiferença: 1. pôr a economia ao serviço dos povos; 2. construir a paz e a justiça; 3. defender a Mãe Terra.

Naquele dia, com a voz de uma “cartonera” [N.T.: catadora de papel] e de um camponês, na conclusão foram lidos os dez pontos de Santa Cruz de la Sierra, onde a palavra mudança estava carregada de um grande conteúdo, ligada às coisas fundamentais que vós reivindicais: trabalho digno para quantos são excluídos do mercado do trabalho; terra para os camponeses e as populações indígenas; habitações para as famílias desabrigadas; integração urbana para os bairros populares; eliminação da discriminação, da violência contra as mulheres e das novas formas de escravidão; fim de todas as guerras, do crime organizado e da repressão; liberdade de expressão e de comunicação democrática; ciência e tecnologia ao serviço dos povos. Ouvimos também como vos comprometestes a abraçar um projeto de vida que rejeite o consumismo e recupere a solidariedade, o amor entre nós e o respeito pela natureza como valores essenciais. É a felicidade de «viver bem» aquilo que reclamais, a “vida boa”, e não aquele ideal egoísta que enganosamente inverte as palavras e propõe a “boa vida”.

Sei também que foram realizados encontros e laboratórios em vários países, onde se multiplicaram os debates à luz da realidade de cada comunidade. Isto é muito importante porque as soluções reais para as problemáticas atuais não sairão de uma, três ou mil conferências: elas devem ser fruto de um discernimento coletivo que amadurece nos territórios juntamente com os irmãos, um discernimento que se torna ação transformadora.

O colonialismo ideológico globalizador procura impor receitas supraculturais que não respeitam a identidade dos povos. Vós caminhais por outra vereda que é local e, ao mesmo tempo, universal.

O terror e os muros

No entanto esta germinação, que é lenta — aquela à qual eu me referia — e que tem os seus tempos, como todas as germinações, é ameaçada pela velocidade de um mecanismo destruidor que age em sentido contrário. Existem forças poderosas que podem neutralizar este processo de amadurecimento de uma mudança, que seja capaz de mudar o primado do dinheiro e pôr novamente no centro o ser humano, o homem e a mulher. Aquele «fio invisível» do qual pudemos falar na Bolívia, aquela estrutura injusta que une todas as exclusões que vós padeceis, pode consolidar-se e transformar-se num chicote, num chicote existencial que, como no Egito do Antigo Testamento, escraviza, rouba a liberdade, golpeia sem misericórdia certas pessoas e ameaça constantemente outras, para abater todos como reses, até onde o dinheiro divinizado quiser.

Então, quem governa? O dinheiro. Como governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência financeira, social, cultural e militar que gera cada vez mais violência numa espiral descendente que parece infinita. Quanta dor e quanto medo! Existe — como eu disse recentemente — um terrorismo de base que provém do controle global do dinheiro na terra, ameaçando a humanidade inteira. É deste terrorismo de base que se alimentam os terrorismos derivados, como o narcoterrorismo, o terrorismo de Estado e aquele que alguns erroneamente chamam terrorismo étnico ou religioso. Mas nenhum povo, nenhuma religião é terrorista! É verdade, existem pequenos grupos fundamentalistas em toda a parte. Mas o terrorismo começa quando “se expulsa a maravilha da criação, o homem e a mulher, colocando no seu lugar o dinheiro” (Conferência de imprensa no voo de regresso da Viagem Apostólica à Polónia, 31 de julho de 2016). Este sistema é terrorista.

Toda a doutrina social da Igreja e o magistério dos meus predecessores estão revoltados contra o ídolo dinheiro, que reina em vez de servir, tiraniza e aterroriza a humanidade.

Nenhuma tirania se sustém sem explorar os nossos medos. Esta é uma chave! Por isso, cada tirania é terrorista. E quando este terror, que foi semeado nas periferias com massacres, saques, opressões e injustiças, eclode nos centros sob várias formas de violência, até com atentados hediondos e infames, os cidadãos que ainda conservam alguns direitos são tentados pela falsa segurança dos muros físicos ou sociais. Muros que encerram alguns e exilam outros. Por um lado, cidadãos murados, apavorados; e por outro, excluídos, exilados, ainda mais aterrorizados.

O medo é alimentado, manipulado… Porque, além de ser um bom negócio para os comerciantes de armas e de morte, o medo debilita-nos, desestabiliza-nos, destrói as nossas defesas psicológicas e espirituais, anestesia-nos diante do sofrimento do próximo e no final torna-nos cruéis. Quando sentimos que se festeja a morte de um jovem que talvez tenha errado o caminho, quando vemos que se prefere a guerra à paz, quando vemos que se propaga a xenofobia, quando constatamos que propostas intolerantes ganham terreno; por detrás de tal crueldade, que parece massificar-se, sopra o frio vento do medo.

Todos os muros ruem. Todos! Não nos deixemos enganar. Como vós mesmos dissestes: “Continuemos a trabalhar para construir pontes entre os povos, pontes que nos permitam derrubar os muros da exclusão e da exploração”.

O amor e as pontes

Às vezes penso que quando vós, pobres organizados, inventais o vosso trabalho, criando uma cooperativa, recuperando uma fábrica falida, reciclando os descartes da sociedade consumista, enfrentando a inclemência do tempo para vender numa praça, reivindicando um pequeno pedaço de terra para cultivar e alimentar quem tem fome, quando fazeis isto imitais Jesus porque procurais curar, mesmo que seja só um pouco e de modo precário, esta atrofia do sistema socioeconómico imperante que é o desemprego. Não me surpreende que inclusive vós, por vezes, sois controlados ou perseguidos, e também não me causa admiração que os soberbos não se interessem por aquilo que vós dizeis.

Sei que muitos de vós arriscam a vida.

Os “3 t”, o vosso grito que faço meu, têm algo daquela inteligência humilde mas ao mesmo tempo vigorosa e purificadora. Um projeto-ponte dos povos diante do projeto-muro do dinheiro. Um programa que visa o desenvolvimento humano integral. Alguns sabem que o nosso amigo, Cardeal Turkson, agora preside ao Dicastério que tem o seguinte nome: Desenvolvimento Humano Integral. O contrário do desenvolvimento, poder-se-ia dizer, é a atrofia, a paralisia. Temos o dever de ajudar a curar o mundo da sua atrofia moral. Este sistema atrofiado é capaz de fornecer algumas «próteses» cosméticas que não constituem verdadeiros desenvolvimentos: crescimento da economia, progressos tecnológicos, maior «eficiência» para produzir coisas que se compram, se usam e se abandonam, englobando-nos todos numa vertiginosa dinâmica do descarte… Mas este mundo não permite o desenvolvimento do ser humano na sua totalidade, o desenvolvimento que não se reduz ao consumo, que não se limita ao bem-estar de poucos, que inclui todos os povos e as pessoas na plenitude da sua dignidade, desfrutando fraternalmente da maravilha da criação. Este é o desenvolvimento do qual nós temos necessidade: humano, integral, respeitador da criação, desta casa comum.

Falência e resgate

Sei que dedicastes um dia ao drama dos migrantes, dos refugiados e dos deslocados. Como agir diante desta tragédia? Trata-se de uma situação infamante, que só posso descrever com uma palavra que me brotou espontaneamente em Lampedusa: vergonha!

Ali, assim como em Lesbos, pude sentir de perto o sofrimento de numerosas famílias expulsas da sua terra por motivos ligados à economia ou por violências de todos os tipos, multidões exiladas — eu disse-o diante das autoridades do mundo inteiro — por causa de um sistema socioeconómico injusto e das guerras que não foram procuradas nem criadas por aqueles que hoje padecem a dolorosa erradicação da sua pátria, mas ao contrário por muitos daqueles que se recusam a recebê-los.

O que acontece com o mundo de hoje que, quando se verifica a falência de um banco, imediatamente aparecem quantias escandalosas para o salvar, mas quando ocorre esta falência da humanidade praticamente não aparece nem uma milésima parte para salvar aqueles irmãos que sofrem tanto? E assim o Mediterrâneo tornou-se um cemitério, e não apenas o Mediterrâneo… muitos cemitérios perto dos muros, muros manchados de sangue inocente.

O medo endurece o coração e transforma-se em crueldade cega, que se recusa a ver o sangue, a dor, a face do próximo. É verdadeiramente um problema do mundo. Ninguém deveria ver-se obrigado a fugir da sua pátria. Mas o mal é duplo quando, diante destas circunstâncias terríveis, os migrantes se veem lançados nas garras dos traficantes de pessoas, para atravessar as fronteiras; e é triplo se, chegando à terra na qual julgavam encontrar um porvir melhor, são desprezados, explorados e até escravizados! Pode-se ver isto em qualquer recanto de centenas de cidades. Ou simplesmente não os deixam entrar.

Peço-vos que façais tudo o que for possível. Peço-vos que exerçais aquela solidariedade tão singular que existe entre quantos sofreram. Vós sabeis recuperar fábricas das falências, reciclar aquilo que outros abandonam, criar postos de trabalho, cultivar a terra, construir habitações, integrar bairros segregados e reclamar de modo incessante, como a viúva do Evangelho que pede justiça insistentemente (cf. Lc 18, 1-8). Talvez com o vosso exemplo e a vossa insistência, alguns Estados e Organizações internacionais abram os olhos e adotem medidas adequadas para acolher e integrar plenamente todos aqueles que, por um motivo ou por outro, procuram refúgio longe de casa. E também para enfrentar as profundas causas pelas quais milhares de homens, mulheres e crianças são expulsos cada dia da sua terra natal.

Dar o exemplo e reclamar é um modo de fazer política, e isto leva-me ao segundo tema que debatestes no vosso encontro: a relação entre povo e democracia. Uma relação que deveria ser natural e fluida, mas que corre o perigo de se ofuscar, até se tornar irreconhecível. O fosso entre os povos e as nossas atuais formas de democracia alarga-se cada vez mais, como consequência do enorme poder dos grupos económicos e mediáticos, que parecem dominá-las. Sei que os movimentos populares não são partidos políticos, e permiti-me dizer-vos que, em grande parte, é nisto que se encontra a vossa riqueza, porque exprimis uma forma diferente, dinâmica e vital de participação social na vida pública. Mas não tenhais medo de entrar nos grandes debates, na Política com letra maiúscula.

Gostaria de frisar dois riscos que giram em volta da relação entre movimentos populares e política: o risco de se deixar arquivar e o risco de se deixar corromper.

Primeiro, não se deixar amarrar, porque alguns dizem: a cooperativa, o refeitório, a horta agroecológica, as microempresas, o projeto dos planos assistenciais… até aqui tudo bem. Enquanto vos mantiverdes na divisória das “políticas sociais”, enquanto não puserdes em questão a política económica ou a Política com “p” maiúsculo, sois tolerados. Aquela ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projeto que reúna os povos, às vezes parece-se com uma espécie de carro mascarado para conter os descartes do sistema. Quando vós, da vossa afeição ao território, da vossa realidade diária, do bairro, do local, da organização do trabalho comunitário, das relações de pessoa a pessoa, ousais pôr em questão as “macrorrelações”. Quando levantais a voz, quando gritais, quando pretendeis indicar ao poder uma organização mais integral, então deixais de ser tolerados, não sois muito tolerados porque estais a sair da divisória, estais a deslocar-vos para o terreno das grandes decisões que alguns pretendem monopolizar em pequenas castas. Assim a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencantando porque deixa fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção do seu destino.

Vós, organizações dos excluídos e tantas organizações de outros setores da sociedade, estais chamados a revitalizar, a refundar as democracias que estão a atravessar uma verdadeira crise. Não caiais na tentação da divisória que vos reduz a agentes secundários ou, pior, a meros administradores da miséria existente. Nestes tempos de paralisia, desorientação e propostas destruidoras, a participação como protagonistas dos povos que procuram o bem comum pode vencer, com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade, ou de um bem-estar egoísta e uma segurança ilusória.

Sabemos que “enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais” (Exortação Apostólica Evangelii gaudiumn. 202). Por isso, disse e repito-o, “o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança” (Discurso no segundo encontro mundial dos movimentos popularesSanta Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015). Este é o primeiro risco: o risco de se deixar encaixar e o convite a entrar na grande política.

O segundo risco, dizia-vos, é deixar-se corromper. Assim como a política não é uma questão de “políticos”, também a corrupção não é um vício exclusivo da política. Há corrupção na política, há corrupção nas empresas, há corrupção nos meios de comunicação, há corrupção nas igrejas e há corrupção também nas organizações sociais e nos movimentos populares. É justo dizer que há uma corrupção radicada nalguns âmbitos da vida económica, em particular na atividade financeira, e que faz menos notícia do que a corrupção diretamente relacionada com o âmbito político e social. É justo dizer que muitas vezes se utilizam os casos de corrupção com más intenções. Mas também é justo esclarecer que quantos escolheram uma vida de serviço têm uma obrigação ulterior que se acrescenta à honestidade com a qual qualquer pessoa deve agir na vida. A medida é muito alta: é preciso ter a vocação para servir com um forte sentido de austeridade e humildade. Isto é válido para os políticos mas também para os dirigentes sociais e para nós pastores. Disse “austeridade” e gostaria de esclarecer ao que me refiro com a palavra austeridade, porque pode ser uma palavra equívoca. Pretendo dizer austeridade moral, austeridade no modo de viver, austeridade na maneira como levo por diante a minha vida, a minha família. Austeridade moral e humana. Porque em âmbito científico, científico-económico, se quiserdes, ou das ciências do mercado, austeridade é sinónimo de adaptação… Não me refiro a isto, não estou a falar disto.

A qualquer pessoa que seja demasiado apegada às coisas materiais ou ao espelho, a quem ama o dinheiro, os banquetes exuberantes, as casas sumptuosas, roupas de marca, carros de luxo, aconselharia que compreenda o que está a acontecer no seu coração e que reze a Deus para que o liberte destes laços. Mas, parafraseando o ex-presidente latino-americano que está aqui, todo aquele que seja apegado a estas coisas, por favor, que não entre na política, não entre numa organização social ou num movimento popular, porque causaria muitos danos a si mesmo, ao próximo e sujaria a nobre causa que empreendeu. E que também entre no seminário!

Diante da tentação da corrupção, não há remédio melhor do que a austeridade, a austeridade moral, pessoal: e praticar a austeridade é, ainda mais, pregar com o exemplo. peço-vos que não subestimeis o valor do exemplo porque tem mais força do que mil palavras, mil panfletos, mil “gosto” [N.T.: curtidas; em português do Brasil], mil retweets, mil vídeos no youtube. O exemplo de uma vida austera ao serviço do próximo é o modo melhor para promover o bem comum e o projeto-ponte dos “3 t”. Peço a vós dirigentes que não vos canseis de praticar esta austeridade moral, pessoal, e peço a todos que exijam dos dirigentes esta austeridade, que — de resto — os fará sentir-se muito felizes.

A corrupção, a soberba e o exibicionismo dos dirigentes aumentam o descrédito coletivo, a sensação de abandono e alimenta o mecanismo do medo que apoia este sistema iníquo.

Versão completa (em português):

http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/november/documents/papa-francesco_20161105_movimenti-popolari.html

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *