Em busca de um pensamento original

A crise global é um desafio intelectual. A economia como disciplina não tem se mostrado à altura das circunstâncias. Por quê? O problema reside na busca de um modelo universal que é inalcançável e do conseqüente afastamento da realidade. Para voltar para ela é necessário repensar (a) os pressupostos do modelo econômico e (b) a organização institucional da pesquisa e do ensino superior.“Anúncio: busca-se um novo Galileo ou um Copérnico disposto a reformular teoria econômica. Apresentar modelos e dados aos vinte primeiros departamentos de economia do mundo (segundo o ranking do US News e World Report). Em caso de nenhuma resposta, dirigir-se aos vinte primeiros departamentos de sociologia.”

O leitor imagine este aviso em qualquer jornal de prestígio internacional, como pode ser o Le Monde, o Corriere Della Sera, o Financial Times ou o Wall Street Journal.

Aqueles que estão hoje à frente de países do primeiro e de outros mundos afetados pela crise buscam iluminar a penumbra econômica na que está submerso o planeta com a lanterna fraca de um keynesianismo de baixa amperagem. Se perguntam, suponho, o que posso fazer para me parecer com Franklin Delano Roosevelt? E não encontram resposta.

Os dois últimos anos têm sido favoráveis à reputação dos economistas que apóiam o pensamento hegemônico. Durante mais de duas décadas assistimos ao que parecia ser uma ascensão irresistível desta perspectiva econômica. Mas hoje se vê que falharam em sinalizar a fragilidade fundamental dos mercados financeiros e que não anteciparam a crise. Agora, em pleno desmoronamento da economia global, não chegam a um acordo nem sobre as políticas adequadas, nem sobre o curso provável dos acontecimentos. Em edições anteriores da Opinión Sur pude indicar as diversas “escolas” de propostas econômicas de resgate das economias centrais e também das periféricas. São diferentes umas das outras, mas têm duas características em comum: são incertas e são intelectualmente medíocres.

O curioso é que no último quarto de século foram feitas mais pesquisas econômicas que em toda a história anterior. Sem dúvida, no meio desta crise, os economistas mais citados são os mortos: por exemplo, John Maynard Keynes, Irving Fisher ou Hyman Minskyi, pertencem a gerações anteriores.

Desde a década de setenta, afirma John Kayii, os economistas estão dedicados a um grande projeto. Se trata nada menos do que assentar as bases microeconômicas do calculo macroeconômico. Em outras palavras, isto significa que o que têm que decidir sobre as grandes decisões importantes de política, como são o crescimento e a inflação, o auge e a recessão, deve focar-se no estudo do comportamento individual. Ou, se o leitor preferir outra versão do mesmo, se trata de construir modelos a partir do comportamento racional de indivíduos que buscam “otimizar” seus interesses. Mas este “tipo ideal” de homo economicus é uma esterilização de uma configuração histórico-cultural que (1) não se deu em todas as partes, mas apenas em um dos mundos capitalistas possiveisiii e, (2) é insuficiente, até mesmo ali onde é culturalmente legítimo, para explicar tanto o comportamento individual como o comportamento social.

Não são poucos os economistas que se cumprimentam desta decisão paradigmática e que consideram que sua tarefa coletiva tem sido um êxito. Nas principais universidades dos Estados Unidos, e em geral do mundo globalizado, dominam o resto das ciências sociais em termos de recursos, prestigio e remuneração. Ocupam uma posição que se sobressai no campo de poder das disciplinas.iv

Devo relembrar o leitor que na organização atual das universidades chamadas “de pesquisa” (research universities), os critérios de excelência são auto-referenciais. Em cada disciplina são os colegas de área que adjudicam a própria classe, premiando ou desaprovando o desempenho acadêmico de cada um. Esse é o maior freio ao trabalho pluridisciplinar por problemas, que sempre ocupa um segundo lugar, atrás do trabalho intradisciplinar por área especializada. No campo das ciências sociais, é mais bajulado aquele que exibe um trabalho rigoroso (fundamentalmente matemático) e ali os modelos dos economistas é que levam os aplausos. Situadas em posição superior na hierarquia universitária, cuja recompensa tem sido ascender ao clube dos prêmios Nobel, a profissão se distancia de todas as demais. Nunca a torre de marfim tem sido tão confortável, nem a sofisticação tão bizantina.

Não cabe dúvida: os modelos econométricos têm uma grande precisão. Mas sua elegância formal tem pouco a ver com a realidade empírica. Aqueles que têm de formular e executar políticas públicas, aqueles que têm que tomar decisões concretas para suas empresas, grandes, médias ou pequenas, os negociantes, os trabalhadores e o público geral não se interessam pela precisão ou pela elegância formal dos modelos. Querem saber se são úteis para suas atividades que fundam a riqueza de um pais. Buscam explicações que iluminem e não ofusquem. No campo do real, muitos economistas parecem se comportar – conforme a expressão popular – “como cachorros em ( —“como perro en cancha ‘e bochas.”)

Por vezes, a arrogância auto-referencial não tem limites. Um dos Nobel em economia, o professor Robert Lucas – premiado por fundar a macroeconomia sobre bases microeconômicas – chegou a formular uma tese – chamada entre seus colegas “a crítica Lucas” – na qual sustentava que as predições econômicas não devem se submeter à verificação estatística normal, porque tal verificação empírica destruiria muitos modelos belíssimos. Esta atitude me faz lembrar uma anedota apócrifa do grande filosofo do idealismo alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que, interrogado ao final de uma conferência por um senhor que lhe disse: “Professor, sua teoria não se ajusta aos fatos”; respondeu: “Pois pior para os fatos” (Umso schlimmer fur die Tatsachen!).

Acredito que o problema reside na busca de uma ciência universal do comportamento, a partir de premissas bastante simples. A economia, de maneira diferente da física, não é uma ciência básica. Há tempos que a física busca (por enquanto sem êxito) uma “teoria do todo”. Einstein buscou-a, sem encontrá-la: para ele se tratava de reduzir a explicação do universo a uma teoria de partículas elementares em apenas um campo unificado. O que na física é possível, ainda que não se tenha conseguido na economia, é uma busca fútil e até mesmo cômica – algo como a ambição enciclopédica de Bouvard e Pecuchet, aqueles ridículos personagens de Flaubert. Buscar uma teórica única “de todas as coisas” em um nível ontológico mais baixo, ou seja, ao nível de comportamentos humanos complexos, é uma quimera.

Muitos economistas insistem em partir de premissas simples para chegar, no final do caminho, a situações complexas. O mesmo aconteceu há 5 séculos com a teoria de Ptolomeu (que, por sua vez, era proveniente do século VI a.C) – aceita como dogma pela Igreja medieval – que considerava a Terra como o centro do Universo. Esta teoria podia explicar até um certo ponto o movimento (aparente) dos astros, do Sol e dos planetas. E até hoje serve perfeitamente para fazer cálculos de navegação em alto mar com um sextante, um relógio e umas tábuas astronômicas, aplicando a trigonometria esférica. É o caso de um cálculo preciso para uma circunstância particular sobre uma base teórica equivocada. Porém, dado que o Sol e não a Terra está no centro do sistema, o sistema ptolomaico não podia explicar muitas anomalias em outros cálculos. Para isso, formulava muitas explicações ad hoc, que chamava de “epiciclos”. Terminava com explicações complexas e barrocas para salvar seus pressupostos. Galileo e Copérnico revolucionaram a astronomia de seu tempo mudando a premissa, ajustando-a à realidade. Desde então, sabemos, ainda que não pareça, quando o Sol nasce de madrugada e se põe ao entardecer, que nosso mundo gira ao redor dele. Diante da crise atual, as ciências econômicas estão em um momento copernicano. As coisas não funcionam de acordo com as predições do modelo e, em apuros, muitos economistas adicionam ciclos e epiciclos. Portanto, torna-se necessário um Copérnico ou um Galileo neste campo.

Para que a economia se transforme em uma teoria geral do comportamento humano, é preciso fundá-la em pressupostos fundamentais: extrema racionalidade dos atores e eficiência dos mercados. Mas essa pretensão é, em si mesma, irracional. Qualquer outra teoria realmente válida tem alcance médio e se embasa na formação e evolução das crenças e no avanço do conhecimento empírico de pautas de comportamento. Aqui nos aproximamos das ciências sociais, em geral deixadas de lado pelos economistas, porque não têm, nem terão, a precisão de uma teoria geral. Os esforços da sociologia na década de cinqüenta para formular uma teoria geral foram abandonados nas décadas seguintes e essa foi a condição de avanço desta disciplina.

Ainda que as coisas estejam assim, existe um reduto importante de economistas “puros” que realmente acredita que seus esquemas podem explicar todo o comportamento humano e que realidades, tais como os valores, as normas que não se ajustam a um esquema racional, e em geral o que faz a cultura em um sentido lato da palavra, são especulações imprecisas – algo como fantasias poéticas. Estes “duros” da profissão econômica são os talibãs das ciências sociais.

Para aqueles que vivem no mundo real, os propósitos destes teóricos dogmáticos são verdadeiros despropósitos. O apotegma da racionalidade da ação e a eficiência dos mercados não são premissas geniais. Qualquer um as entende. O problema é que são falsas. Grande parte dos dilemas para resolver em economia e dos temas a serem explicados: por exemplo, a geração de benefício e a instabilidade dos mercados globais, resultam da falha destes pressupostos na maior parte das situações concretas. As flutuações das bolsas de valores, a avaliação equivocadas dos bens e a falta de informação dos atores nos têm levado para onde estamos e os economistas têm tido pouco ou nada o que dizer.

Em ciências sociais – incluindo a economia – apenas se pode produzir conhecimento aproximado ou provisional. As teorias que mais iluminam a realidade econômica são campos de hipóteses de médio alcance, que iluminam situações particulares. Devemos partir de regularidades empíricas, usar estatísticas avançadas e compreender a gramática de normas e valores que guiam o comportamento. Já é bastante e dá melhores resultados. As ciências sociais são da mesma ordem epistemológica que a engenharia e a medicina: são técnicas de diagnósticos que ajudam à ação pública e privada. São disciplinas pragmáticas, não disciplinas paradigmáticas.

A crise global da nossa época é, ao mesmo tempo, um desastre e uma provocação para pensar de uma maneira diferente. É também uma crise da organização do conhecimento. E como a pesquisa hoje se realiza principalmente nos centros universitários, é hora de repensar a universidade, com o objetivo de desarmar os departamentos acadêmicos existentes e recompor seus elementos em equipes pluridisciplinares, em torno de desafios práticos e problemas complexos. Até hoje temos transitado o caminho de isolamento entre disciplinas e uma super-especialização dentro das mesmas. Chegou a hora de equipes inclusivas de diversos experts de tarefas especificas. Como dizia um famoso político do século XX, a única verdade é a realidade.

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i. Muito lidos são os papers de John Maynard Keynes, “The Great Slump of 1930,” (1930), o trabalho de Irving Fisher, “The Debt-Deflation Theory of Great Depressions” (1934), e o livro de Hyman Minsky, Can “It” Happen Again? Essays on instability and finance (1982).
ii. Economista britânico, autor do livro “La Verdad Acerca de los Mercados” (2003). Escreve com frequência para o Financial Times.
iii. Sobre estes mundos recomendo ler o livro do sociólogo dinamarquês Gosta Esping-Andersen, Social Foundations of Postindustrial Economies, 1999. Este autor distingue entre vários homines: homo liberalis, homo familis y homo socialdemocraticus.
iv. Ver a respeito o artigo de John Mankoff e Verónica Montecinos, “El Irresistible Ascenso de Los Economistas,” Desarrollo Económico. Revista de Ciencias Sociales, no. 133, abril-junio de1994.

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