2014: O Caminho da Paz e o Caminho da Guerra

Se chegasse a estalar, a Terceira Guerra Mundial se parecerá não com a Segunda mas com a Primeira.A Segunda Guerra Mundial foi, ao mesmo tempo, a primeira e a última guerra total séria (com armamento industrial) e convencional (entre forças armadas nacionais e com insígnia). Deixou as seguintes sequelas: mais de 50 milhões de mortos, o fim do mundo europeu, a bomba nuclear e um sistema mundial bipolar dividido entre duas superpotências extraeuropeias com modelos de ideologia e sociedade rivais e contrapostos.

O mundo entrou logo na era da Guerra Fria, em que os dois rivais se armaram até os dentes com equipes termonucleares que não queriam usar, já que seu lançamento garantia a destruição mútua e, ademais, a de toda a humanidade. A paz se sustentava só pelo temor ao suicídio recíproco e coletivo. Foi um equilíbrio de terror. As únicas guerras aceitáveis em tal situação foram guerras indiretas, por interpostos atores, que atuavam como peões em tabuleiro de xadrez.

A Guerra Fria não terminou com o triunfo militar do ocidente capitalista e liberal, senão com a implosão e o desmoronamento da União Soviética, e o abandono da economia socialista por parte da República Popular da China. Em seu momento muitos creram que se inaugurava uma nova era de paz, desta vez assentada na compatibilidade dos sistemas econômicos e políticos. Capitalismo e democracia se anunciavam como modelos irrecusáveis, com uma forma de viver sem um “arredor” e, portanto, como o fim (feliz) da história humana. Ao menos essa era a opinião de alguns intelectuais públicos, sempre pressionados a publicar uma opinião plausível antes de analisar uma situação a fundo.

O otimismo foi prematuro e durou pouco. O domínio do sistema sobrevivente cegou a quase todos – vencedores e vencidos – diante dos problemas e contradições do capitalismo triunfante, a saber: o descontrole dos mercados sem regulação, a crescente desigualdade social interna e internacional, a assimetria entre o capital e o trabalho, a exclusão de amplas massas, o predomínio do capital financeiro sobre o aparato de produção, a busca de ganhos rápidos, o curto-prazismo, a fragilidade de todo o sistema diante de uma crise financeira, a inter-relação global das crises repetidas e aumentadas, a recuperação fictícia e anêmica, o risco ecológico, a metástase de resistência e de violência, e uma marcada tendência à disfunção dos sistemas de governo. Longe de alcançar a utopia de uma nova e mais justa ordem mundial, vemo-nos diante de uma desordem multipolar e uma nova luta entre poderes declinantes e poderes ascendentes.

O corolário geopolítico é inquietante. Para encontrar paralelos, devemos saltar por cima dos antecedentes históricos mais recentes (Guerra Fria e Segunda Guerra Mundial) e retroceder exatamente um século, à situação mundial entre os anos de 1913 e 1914. O desafio geopolítico daqueles anos era encontrar uma resposta pacífica e concertada para a tensão crescente entre uma economia global aberta e uma autocracia em ascensão (Alemanha imperial, então; China e Irã hoje). Então, como agora, aumentava o receio entre as potências. Sabemos como terminou aquela história: em uma grande guerra, que naquela época todos achavam improvável, ou em caso de estalar, de curta duração e escassa transcendência. Quatro anos sangrentos e dez milhões de mortos desabusaram nossos avós de suas complacentes suposições. Desconhecemos como nossa própria história vai terminar, mas podemos, todavia, evitar aquele desastroso erro de cálculo.

No mundo atual, a probabilidade de um erro de consequências incalculáveis é tão alta como então. Naquela época, o foco de instabilidade se localizava nos Bálcãs. Hoje há pelo menos três: a superposição de zonas de defesa aérea entre China, Japão e Coreia de Sul, com o acréscimo do aventureirismo bélico da Coreia do Norte na mesma região e a ingerência ativa dos Estados Unidos em defesa de uma hegemonia que está à míngua; no Oriente Médio, a rivalidade entre Israel, Arábia Saudita e Irã, potencializada por conflitos interétnicos e religiosos, mas a ingerência russa; e na Ásia do sul, a rivalidade nuclear entre Índia e Paquistão. Qualquer provocação por parte de qualquer dos atores nessas regiões é capaz de desencadear um conflito mundial de enormes consequências. Nesse conflito interviriam grandes, pequenos e médios: Estados Unidos, China, Rússia, Irã, Israel, Paquistão, para numerar apenas uns poucos. Como sempre, a América Latina estaria com um pouco de sorte à margem das ações principais.

Do fatídico ano de 1914 podemos tirar uma lição, a saber: não há que descontar a capacidade de atores regionais e menores de envolver os atores maiores em um processo bélico multiplicador. Duzentos anos antes de Cristo, Arquimedes sustentava: “Dá-me um ponto de apoio e moverei o mundo”. Dois milênios mais tarde, Churchill dizia: “A região dos Bálcãs tem a tendência de produzir mais história do que pode consumir.” China-Japão, Israel-Irã, Índia-Paquistão são alavancas perfeitamente capazes de produzir mais história do que podem consumir. A esta série explosiva de Estados em tensão temos que agregar a ingerência de atores violentos não estatais (redes terroristas) que também cumpriram um papel detonador na Primeira Guerra Mundial. A outra lição daquela guerra é que todos os participantes – triunfantes e derrotados – sofreram consequências catastróficas, como antecipou o autor inglês Norman Angell em seu livro A grande ilusão (1909), ainda que tenha se equivocado no corolário, uma vez que pensou que uma guerra seria tão descabida que ninguém se ia atrever. Hoje temos a vantagem – para os que buscam aprender algo da História – de estudos excelentes sobre a série de erros, complacências e distrações que levaram à guerra de 1914. Destaco entre eles o recente livro de Max Hastings, Catastrophe 1914: Europe Goes to War (2013), e o mais antigo e volumoso tomo de Niall Ferguson The Pity of War: Explaining World War I (1999). Para estar alerta, recomendo ao leitor que faça uma revisão, ainda que na Wikipedia, do todavia tranquilo janeiro de 1914 – um mundo complacente, globalizado, embelezado com as novidades tecnológicas do momento, um mundo atarefado e distraído, que pensava que nada estranho podia acontecer. Que tenham todos um bom janeiro em 2014.

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