Um MESTRE, daqueles dignos e valentes, enfrenta os abutres

Ontem, 8 de março, faleceu em seus admiráveis 88 anos o economista Aldo Ferrer. Um Mestre, daqueles dignos e valentes, que esclarece quando se expressa. A ele, dedicamos esta edição de Opinión Sur transcrevendo uma de suas últimas análises sobre os fundos-abutre.

 

“A negociação com os abutres”, por Aldo Ferrer

A questão central no conflito com os abutres é a resposta à seguinte questão: sua resolução é indispensável ou só conveniente para o curso futuro da economia argentina? No primeiro caso, se imporá uma demanda dos abutres e a negociação é, em realidade, uma ficção. No segundo, a negociação é real porque pode não haver acordo, se o custo da demanda da contraparte é maior que seus benefícios. A evidência é angustiante no sentido de que os abutres são um problema de segunda importância e, por outro lado, que o arranjo é conveniente mas não indispensável. Pelas seguintes razões:

 1. Nos acordos de 2005 e 2010, a Argentina conseguiu a reestruturação da dívida soberana mais exitosa da história, sem pedir nada a ninguém. Isto é, sem a participação do FMI nem a aprovação dos mercados financeiros. A dívida pendente não alcançava a três bilhões de dólares, menos de 8% do total da declarada em calote na crise de 2001. O suposto aumento da pendente para 12 bilhões de dólares, por interesses baixos, ignora que o pagamento aos abutres teria desarmado a reestruturação da dívida e implicado um prêmio à especulação e o castigo à imensa maioria dos investidores que facilitaram a recuperação da economia argentina. Estaríamos, outra vez, como na crise de 2001.

 2. Faz uma década que os fundos-abutre, detentores de 50% da dívida pendente, vêm litigando contra o país. Apresentaram o embargo de bens argentinos em redor de 900 demandas em diversos países. O fato mais famoso foi o da fragata “Libertad”. Não tiveram êxito em nenhum caso. O país mantém relações econômicas normais com todo o mundo. Os abutres são especuladores depreciados no cenário mundial. Operamos em uma ordem internacional dentro da qual a imunidade soberana dos Estados põe limites à extrapolação da jurisdição de tribunais nacionais sobre terceiros países. A razoabilidade da posição argentina tem sido respaldada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e a opinião dos analistas mais destacados no cenário mundial.

3. Os problemas principais da economia estão na esfera interna: o déficit do comércio de manufaturas de origem industrial e a consequente restrição externa, a inflação, o desequilíbrio fiscal, entre outros. Nenhum se resolve pagando aos abutres.

 4. O conflito obedece à ausência de normas internacionais para resolver o calote de dívidas soberanas. A exitosa reestruturação de mais de 92% da dívida em calote cumpre com excesso os limites para a resolução das quebras nas jurisdições nacionais. As dificuldades de detentores da dívida reestruturada para receber os pagamentos realizados pelo governo argentino é responsabilidade de quem provoca a interrupção da cadeia de pagamentos.

5. A suposição de que depois do arranjo com os abutres chegarão os investimentos é uma ficção. Nenhum investidor, argentino ou estrangeiro, que tenha um bom projeto, deixa de realizá-lo pelo conflito com os abutres. O bom “clima de investimentos” depende da governabilidade da economia, a paz social, a segurança jurídica, os espaços de rentabilidade e o ritmo de transformação da estrutura produtiva para incorporar tecnologia e agregar valor.

 6. O pagamento dos abutres não é suficiente para que as agências classificadoras de risco melhorem a qualificação da dívida argentina, com a consequente baixa da taxa de juros. É previsível que exigirão, ademais, um plano econômico e financeiro respaldado pelo FMI. É por essas e outras razões que o acordo com os abutres não resolve nenhum problema fundamental nem garante a baixa da taxa de juros e a entrada de investimentos estrangeiros. Em resumo, o acordo é útil porque remove alguns obstáculos, mas não indispensável.

Quais deveriam ser os limites da oferta argentina? Os mesmos que a dos acordos de 2005 e 2010, como o mostrou o governo anterior. É uma oferta generosa. Representa um excelente ganho para os abutres, considerando o preço ínfimo ao qual adquiriram seus títulos e os custos e perda de tempo que o país suportou por pleitear com os abutres. Quanto maior for o desvio da próxima oferta do Governo com respeito a esse limite, pior será a qualificação que merecerão os atuais negociadores, em termos da defesa do desenvolvimento, os direitos e a soberania da Argentina. O conteúdo do acordo revelará a inspiração do atual governo com relação à autonomia da política econômica e a soberania.

O governo não deve ter esperanças que um acordo satisfatório é possível pela “razoabilidade” dos abutres. O rechaço destes ao necessário caráter público das negociações é um primeiro exemplo. Para defender com eficácia o direito e os interesses do país, é indispensável que o governo assuma a possibilidade de que não se alcance um acordo razoável, e os abutres tomem nota de que, definitivamente, não cobrariam nunca.

A negociação com os abutres é um primeiro passo na definição da estratégia de financiamento internacional. Está apresentada, ao mesmo tempo, a alternativa de ratificar a soberania recuperada com o cancelamento da dívida com o FMI ou voltar a solicitar sua assistência, com as condicionalidades incluídas. É preciso, portanto, que o governo explicite a totalidade de sua política de financiamento internacional e a processe pelas vias institucionais correspondentes.

Durante a “Guerra Fria”, o presidente Kennedy afirmou: “Nunca devemos ter medo de negociar e nunca devemos negociar com medo”. Não há razão alguma para que os negociadores do novo governo atuem com “medo”. Isto é, que suponham que o arranjo com os abutres é uma questão de “vida ou morte”. Existe um nível de dúvida externa pública e privada entre os mais baixos do mundo e os bancos estão rentáveis, com carteiras sólidas, financiados em pesos, sem bolhas especulativas nem desvalorização monetária. Poderíamos estar mais fortes se conservássemos o “superávit gêmeo” no orçamento e a balança de pagamentos e aumentaram as reservas internacionais. De todo modo, o país conserva a fortaleza suficiente para negociar sem medo nem urgências.”

 

Nosso agradecimento ao MESTRE Aldo Ferrer

 

Os Editores

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