Os programas de transferência de renda condicionada (PTRC) têm adquirido uma notável difusão e despertam entusiasmo. Não obstante, convém analisá-los para apreciar seus sucessos e limitações e analisar se essas esperanças têm fundamento, ou se estaria esperando deles mais do que podem oferecer, dado seus recursos em geral escassos e as penúrias, na América Latina, dos serviços de educação e saúde em que se apoiam.
“Em memória de Ernesto Cohen”.
Características dos PTRC
A unidade de atenção desses programas é o “domicílio, que se define como o conjunto de indivíduos que têm uma vida em comum dentro da habitação, que compartilham gastos e preparam os alimentos em uma mesma cozinha, independentemente da existência ou não de laços consanguíneos” entre eles, como estabelece o Programa Oportunidades, do México. As famílias beneficiárias são eleitas mediante a “comprovação de meios” e as características da habitação, que permitem identificar os domicílios de menor renda.
O objetivo do programa é promover o acesso de crianças e jovens extremamente pobres aos serviços de educação e saúde, para que aumentem seu capital humano e possam ingressar em melhores condições no mercado laboral. A primeira condição é, portanto, que exista uma oferta adequada de serviços de educação e saúde, cujo uso deve ser incentivado mediante programas complementares (os PTRC), que entregam à família uma transferência monetária que se condiciona ao cumprimento do compromisso materno de assegurar a assistência escolar e as revisões e cuidados de saúde das crianças e jovens. Há os que rechaçam a condicionalidade e se entusiasmam com com a redução da pobreza real graças à transferência. Esquecem que esses programas são programas de transferências… condicionadas, que buscam um resultado a longo prazo e usam o incentivo monetário para promover a dedicação familiar à formação de crianças e jovens. A transferência é um meio e não o objetivo do programa.
Vantagens das transferências de renda em espécie. Convém recordar que, em outras épocas, as políticas sociais entregavam aos beneficiários bens ou serviços, ou aplicavam subsídios generalizados aos alimentos, à energia elétrica e ao transporte. Hoje, em troca, predomina a entrega de dinheiro em espécie, o que permite aos beneficiários eleger o destino de tais recursos. Estima-se que isso fortaleça sua autonomia e a confiança em si mesmos. Ademais, a disposição de dinheiro em espécie permite-lhes obter melhores preços pelo total da compra dos bens que queiram. Em acréscimo, para o programa, esse procedimento resulta menos oneroso do que, por exemplo, a distribuição de alimentos, porquanto não há que se preparar cestas destinadas a famílias de composição diversa (quanto ao número de membros e idade), e livra de ter de arcar com os custos de armazenamento e distribuição, que levam parte importante dos recursos do programa. Mesmo assim, a transferência não afeta os preços do mercado local, que, inclusive, é estimulado mediante esta injeção de poder de compra.
Cálculo do montante de transferência. Varia segundo os programas e, inclusive, segundo zonas geográficas ou do tipo de bônus a ser entregue. O cálculo deve buscar: (i) alcançar um ponto de equilíbrio entre a atração que a transferência desperta entre os pobres e o efeito sobre o bem-estar familiar dos pobres; (ii) considerar as peculiaridades do tipo de prestação-condicionalidade; (iii) não inibir o empenho na busca de trabalho pelos adultos da família; (iv) não promover famílias muito extensas, o que derivaria da entrega de subsídios por número de filhos, sem estabelecer um máximo. Para calcular o montante das transferências, frequentemente se utiliza como critério o custo de oportunidade de trabalho, os custos de transação em que devem incorrer as famílias para se elegerem à prestação (gastos de transporte e de bolsillo, uso do tempo, etc). Às vezes, há um escalonamento da transferência, pelo qual esta se incrementa ao aumentar a idade do aluno, já que se estende que esse aumenta o risco de abandono escolar optando pelo emprego; ou, pelo contrário, diminui o [valor] transferido quanto maior o tempo de vinculação ao programa, para evitar que se gere dependência. O risco é que o valor transferido se torne pouco atrativo para a família e faça mais rentável o trabalho infantil ou juvenil. Há que se lograr um equilíbrio entre dependência familiar e persistência na formação da nova geração.
Entrega das transferências. É efetuada pelo sistema bancário, depositando o montante nas contas dos beneficiários, para que a manejem diretamente, inclusive utilizando cartões de débito. Isso assegura o pagamento pontual e no montante estabelecido, dificultando fraudes ou cortes. Onde faltam conexões bancárias, recorre-se a pagadores que transferem dinheiro em espécie.
Estratégia de egresso. Originalmente, os programas deveriam ser transitórios, ainda que não estivesse claro como se produziria o egresso (ou “graduação”) dos mesmos. Porém, na prática, nem todos os programas fixaram prazos máximos de permanência no programa ou, se o fizeram, não os aplicam. A variação de prazos entre programas leva a pensar que não se baseiam em critérios técnicos, mas sim somente no montante dos recursos disponível para o programa.
Cabe recomendar que se o objetivo do programa é assegurar a acumulação de capital humano de crianças e jovens, a meta tem que ser a chegada ao umbral educativo que hoje é, na América Latina, de 12 anos de instrução formal, pelo que deveria acompanhar seus beneficiários até que alcancem dito nível, salvo se lograrem avanços na autonomia familiar que deem certeza de que não se produzirá o abandono prematuro.
II. QUESTÕES PENDENTES
Os pressupostos essenciais destes programas são cumpridos? O caminho desde ser um beneficiário do programa até a inserção laboral está cheio de interrogações. Por exemplo, analistas do Puente-Chile Solidario informam desajustes entre as exigências da demanda e a pouca adaptabilidade da oferta, e a carência de flexibilidade que afeta os que participam do programa para desempenhar ocupações que não coincidem com seus ofícios.
Existe uma oferta adequada de serviços públicos? Os programas em estudo contribuem para a incorporação de crianças que não estejam indo à escola e para a permanência dos que tenham a tendência ao abandono. Mas não lhes cabem a qualidade da educação oferecida, nem podem contribuir para a igualdade de oportunidades, o que exigem compensar as diferenças extraescolares. Esses problemas estão além dos PTRCs, e correspondem aos Ministérios.
A focalização é adequada? Fatores institucionais e de desenho do programa podem afetar a seleção de beneficiários. Assim, quando se estabelece que o programa será aplicado nos municípios mais ricos, para aproveitar sua maior capacidade de gestão, ou se excluem os de menores recursos, porque carecem da infraestrutura necessária, se está introduzindo um viés na seleção dos eventuais participantes, que seguramente afeta os mais pobres.
Padrões de beneficiários e Registro Único. Quando este último não existe, corre-se o risco de que programas similares dirigidos aos mesmos segmentos de população se desenvolvam em paralelo, mantendo estruturas burocráticas e interesses particulares próprios. Como se tem dito com respeito à experiência brasileira, “cada ministro [quer] ter o seu programa, ter seu público (seus pobres) (…) não pode se desfazer de um programa de transferência de renda”. O Registro Único evita que se dupliquem tarefas, melhora a imagem que se transmite aos beneficiários porquanto não deverão responder a questionários para diferentes benefícios, e possibilita cruzar informações e realizar avaliações.
Efeitos na pobreza e na distribuição. Alguns autores destacam que estes programas reduzem a pobreza e sua intensidade no curto prazo. Porém, um estudo baseado em uma pesquisa painel de beneficiários do Programa Oportunidades México mostra que somente 18,5% dos domicílios elegíveis em 1997-1998 saíram da pobreza depois de participar por 8 ou 9 anos em dito programa. Não mais de um em cada 20 domicílios mostra uma melhoria sustentada em seu bem-estar. Cabe concluir, então, que a potencialidade desses programas de tirar as famílias da pobreza em curto ou médio prazo pode ser considerada moderada ou baixa.
Os PTRCs alteram a distribuição de renda? No curto prazo, as transferências incidem na distribuição global segundo o montante dos recursos entregues (ou seja, restando ao orçamento total do programa em questão os custos de administração). Em geral, trata-se de um montante pequeno em relação ao PIB nacional. Portanto, o impacto redistributivo será modesto. No longo prazo, o resultado dependerá das mudanças atribuíveis ao programa nos fatores determinantes da distribuição da renda (patrimonial, demográfico, educacional e ocupacional) e da defasagem de remunerações entre diferentes tipos de ocupação. Se os PTRCs melhoraram o capital humano da nova geração e ela acessa o mercado de trabalho, haverá uma melhora distributiva, que deverá ser avaliada caso a caso.
Riscos de clientelismo e de corrupção. Como dizem Gruenberg y Pereyra Iraola, entende-se por clientelismo um vínculo particularista baseado em critérios personalizados que se dá entre alguém com maior poder, status ou recursos (o patrão), que concede proteção, bens, serviços ou favores a outros indivíduos (clientes), que, em troca, entregam assistência, serviços pessoais, reconhecimento ou apoio político-eleitoral. Em muitos países, existe a preocupação quanto aos desvios clientelistas de recursos, com fins proselitistas, dos programas sociais. As pesquisas mostram que os entrevistados têm poucas dúvidas a respeito, ainda que existam poucos estudos empíricos sobre esse tema, sem dúvida difícil de abordar. Uma exceção é o trabalho dos autores citados anteriormente, sobre as denúncias realizadas perante a Unidade Fiscal da Seguridade Social (UFISES), da Argentina, em que foi possível identificar os momentos críticos de corrupção, as características dos denunciantes e dos denunciados, assim como o pobre papel que as instituições participativas e de controle cumprem. Outro âmbito de eventual corrupção tem a ver com as “certificações” de cumprimento da condicionalidade. Os professores e o pessoal da saúde costumam cobrar dos beneficiários os serviços, exação ineludível porque se não aceitam pagar, não receberão as transferências.
CONCLUSÕES
Os PTRCs podem cumprir um papel importante no enfrentamento da pobreza no longo prazo, com a condição de que superem suas questões pendentes. As transferências monetárias permitem às famílias melhorar suas condições materiais de vida no presente. Não obstante, não podem solucionar todos os problemas que devem enfrentar porque tais programas não foram desenhados para arcar com todos os problemas que afetam os pobres e porque contam com recursos muito limitados. Têm um papel complementar e “mobilizador”, que busca conseguir que o investimento público em saúde e educação seja realmente aproveitado pelos mais pobres.
Convém recordar que a política social não pode assumir por si só a tarefa, que lhe ultrapassa, de acabar com a pobreza. Se pretendesse a isso, estaria condenada ao fracasso. Esse objetivo somente poderia ser alcançado em conjunto com uma política econômica, que assegure um crescimento elevado e de boa qualidade, que gere empregos dignos. A política social contribuiria dotando de capital humano as novas gerações para que possam incorporar-se produtivamente ao mercado laboral, e mediante um sistema de proteção social que asseguraria a população contra diversos riscos.
Neste contexto, os PTRCs têm uma tarefa bem delimitada a cumprir, que deve ser revisada constantemente para ajustá-los à heterogeneidade de seus beneficiários e para dar conta da multidimensionalidade da pobreza.
Opinion Sur



