A Cimeira de Bruxelas: do pí¢nico à incerteza

Há vários meses, a Europa se move à beira do abismo, e em seu deslocamento propaga o temor do contágio e de uma nova recessão em nível global. Como resultado de uma gestão tardia, lenta e ineficaz da crise financeira global que se iniciou já faz cinco anos, a Europa se encontra hoje imersa em uma profunda crise de dívida soberana, que mostrou seus primeiros dentes na Grécia, que se expandiu rapidamente pela Irlanda, Portugal e Espanha, e que hoje adquire dimensões insustentáveis ao ter ligado os alarmes na Itália, a terceira economia europeia.
Como um incêndio de verão, a crise se propagou a partir de um país que só significa 2% do PIB europeu, até abarcar um conjunto de países cujas economias superam um terço do produto da Zona do Euro; sem contar a França, sobre cujos títulos soberanos surgiram esta semana ataques e ameaças de requalificação. Como consequência, o pânico ganhou as bolsas do mundo, registrando uma volatilidade de que não se recordava desde 2008. Nas palavras de Angela Merkel, diante do Bundestag: “A situação que a Europa enfrenta é a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial”. “O mundo está olhando para nós”, “Se cair o euro, cairá também a Alemanha”. Em sua urgência por obter o pleno respaldo dos deputados alemães para sua posição na Cimeira de Bruxelas, Merkel foi sincera: a crise europeia tem uma amplitude e uma profundidade que transcende largamente a “tragédia helênica”.

Não obstante, durante meses o drama europeu se restringiu ao risco de calote da dívida grega: “O fracasso da Europa em ajustar seu dispêndio se transladou ao desumanizado ajuste exigido da Grécia”, expressava Daniel Cohn-Bendit em um incendiado discurso perante o Parlamente Europeu. A “farsa” terminou quando as classificadoras castigaram severamente a dívida espanhola e a italiana (120% do PIB), e ameaçaram a francesa. Não só os jubilados gregos são os responsáveis dos sacrifícios dos contribuintes alemães, agora também a resistência dos pensionistas italianos faz cambalear o “inocente” Berlusconi. Agora sim, sem tapumes, se reconhece que a crise transcende a Grécia: hoje está em jogo a sobrevivência do Euro e de todo o sistema financeiro europeu, não somente de bancos detentores da dívida grega.

Diante desse avanço descontrolado da crise, a complexa burocracia europeia despertou de uma incompreensível letargia e iniciou um processo de lenta e intrincada construção de uma solução que Trichet tem chamado de “global e duradoura”. Reunidos na Cimeira de Bruxelas, os presidentes dos 17 países que conformam a Zona do Euro, em consulta com os 27 que conformam a CEE, delinearam um plano de abordagem múltipla e simultânea, que consta de três pilares fundamentais: a recapitalização bancária, a reestruturação da dívida grega e a ampliação do fundo de resgate (EFSF):

– Recapitalização bancária. O capital de máxima qualidade requerido será de 9%, o qual deverá ser alcançado em 30 de junho de 2012, o que equivale a 106 bilhões de euros. A ideia é que sejam os próprios bancos que consigam este capital necessário para chegar aos mínimos que a autoridade bancária europeia (EBA) marca. Antes do final do ano, as entidades devem comunicar seus supervisores nacionais a forma em que pensam captar os fundos que lhes faltam para alcançar o mínimo imposto. Se algum banco não puder financiar-se de forma autônoma, deve ser o supervisor nacional que lhe oferecerá os recursos e, em última instância, o fundo de resgate europeu. Os bancos que necessitarem de mais capital dos que puderem conseguir por seus próprios meios não poderão distribuir dividendos nem bônus a seus executivos até alcançar o colchão de 9%.

– A reestruturação da dívida grega. Os chefes de Estado acordaram que se perdoará 50% da dívida grega. A nova quitação, que será voluntária, supera os 21% pactuados no passado 21 de julho na anterior reunião europeia. Este acordo se produziu de última hora. O Diretor Executivo do Instituto de Finanças Internacionais somente cedeu quando a Eurozona chegou a mobilizar 30 bilhões para garantir o resto do pagamento da dívida grega. O que ainda segue sem definição são os termos em que os bancos chegarão a uma suspensão de pagamentos voluntária.

A chanceler alemã adiantou, ao finalizar a cimeira, que em dezembro se aprovará o segundo plano de ajuda ao país. A ideia é outorgar outro crédito de 100 bilhões de euros às autoridades helenas. Em troca, o governo de Atenas deve assumir uma supervisão permanente da U.E. O prazo da aplicação deste segundo resgate depende de que outras medidas cheguem em boa hora, pois poderia se atrasar.

– Ampliação do fundo de resgate. A União Europeia decidiu que a quantidade deste plano eleve-se a um trilhão de euros. Uma cifra com a que a U.E. terá que fazer frente à recapitalização bancária dos países que não puderem fazer-lhe frente por si mesmos, ou a compra e/ou garantia de títulos no mercado secundário para aqueles países que sofrerem assédio de sua dívida nacional. Assim se evita que o BCE compre dívida, uma ação que não convence a Alemanha. Em paralelo, Bruxelas trabalhará para incrementar o EFSF, com recursos procedentes do FMI e dos países emergentes, fundamentalmente a China.

No curto prazo, a solução construída em Bruxelas estaria evitando o calote grego e a derrubada do sistema financeiro europeu. Seu atual nível de descapitalização e a toxicidade de seus balanços teriam desembocado inexoravelmente no congelamento creditício e, por fim, em uma recessão econômica e uma tragédia social. O que não está claro é como enfrentar a partir daí a crise fiscal e de endividamento que fustiga vários países da Zona do Euro. Ademais, com exceção da Alemanha, todos, em maior ou menor grau, enfrentam sérios problemas de competitividade, o que exige grandes esforços em matéria de níveis salariais, de emprego e de austeridade no gasto público.

Estarão politica e socialmente dispostos os países da Europa a suportar os tremendos ajustes que lhes exige a sobrevivência do esquema de integração ao que pertencem e o símbolo monetário que os engloba? Resistirá o euro a uma Europa tão fustigada econômica e politicamente? Por último, os planos de austeridade que hoje se ensaiam em Grécia, Espanha, Portugal, Itália, etc., constituirão fonte de saneamento econômico, competitividade e crescimento, ou agudizarão a contração econômica, o desemprego e, finalmente, aprofundarão o déficit fiscal e a necessidade de endividamento? Entrará a Europa em um círculo gradualmente virtuoso, ou deslizará em um círculo vicioso de maior austeridade, maior déficit e maior dívida?

São interrogações que o mundo se coloca com incerteza e angústia. Por hora, há uma só certeza. Se a solução aprovada na Cimeira de Bruxelas estabilizar a Europa financeiramente, seu crescimento será muito fraco e cheio de dificuldades nos próximos anos. A OCDE acaba de corrigir as perspectivas de crescimento do PIB europeu para 2011 de 2.3% para 0.8%, uma perspectiva de claro estancamento. Sem crescimento, é muito incerto que se alivie a crise de dívida soberana. Assim como sem liderança política é muito difícil que se consolide o euro como moeda comum.

Visto o problema a partir do ângulo das economias da América Latina, a estabilização financeira da Europa diminui substancialmente o risco de contágio de uma recessão ou uma abrupta queda da demanda. Não sofreremos os efeitos do contágio de uma crise como a de 2009, por agora, mas sofreremos os efeitos de um achatamento e, em consequência, um comércio internacional em contração: exportaremos menos, cresceremos menos e, por fim, teremos que ajustar a dimensão e a qualidade do gasto a uma situação fiscal mais fraca. E devemos fazê-lo com urgência, porque se a situação europeia diminui o risco de recessão e contágio, ingressaremos de toda maneira em uma fase débil de desenvolvimento capitalista no centro do sistema. Da dinâmica que China e Índia possam ainda conservar, dependerá em alto grau o nível econômico de comércio e a atividade das economias da América Latina.

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