Paranoia e novas direitas

Os polos negacionistas de clara vocação paranoica constituem uma nova superfície de inscrição para o devir ultradireitista.

Nas distintas leituras de Nietzsche e Heidegger que antecipam, depois da denominada morte de Deus, o niilismo atual, pode-se apreciar uma das chaves do chamado neoliberalismo contemporâneo. Niilismo, neste caso, é que os valores fundantes da modernidade (verdade, democracia, igualdade, justiça, etc.) perderam suas referências e sentido. Tornaram-se intercambiáveis, multiplicando sua significação até alcançar um esvaziamento de seu sentido original. Não se trata de que não haja valores, mas de que nenhum valha por si mesmo nada.

A morte de Deus implica o desaparecimento da verdade e sua suplantação pelo falatório e incessantes avidez por novidades que, ainda que tomem a aparência de “valores”, podem ser absolutamente contraditórios segundo os interesses em jogo e sem que isso tenha alguma consequência. Pode-se defender a superação da Liberdade e, por sua vez, a moral tradicional e a misoginia mais rançosa; pode-se defender a Pátria frente aos estrangeiros e, por sua vez, realizar todas as manobras para vender a soberania ao capital financeiro. 

Esta antecipação profética de Nietzsche e Heidegger pode ser vinculada aos estudos freudolacanianos sobre as psicoses paranoicas. É mais, a meu juízo, permitem uma leitura mais profunda do niilismo acontecido.

Segundo Lacan, na personalidade paranoica existe uma certeza prévia a qualquer verdade e imune a qualquer demonstração argumentativa: o Outro, o que maneja os fios, nos engana, joga conosco como se fossemos marionetes, nos quer arrebatar um tesouro sagrado que está em nosso interior e, portanto, se deve fundar uma nova ordem que volte a pôr as coisas em seu lugar.

No niilismo da paranoia, há uma descrença constitutiva no Outro, ao que se lhe outorga de um modo imaginário um poder onímodo. Este Outro “enganador” pode ser figurado e representado pelo comunismo, Venezuela, os estrangeiros, as vacinas, o populismo, líderes ou mulheres de grande personalidade política, etc. Deste modo, os pontos de ancoragem que sustentam a verdade e sua fragilidade inerente são substituídos pelas certezas ressentidas.

Como antecipou Nietzsche, na corrente atual do mundo, existe um grande fluxo social de ódio. E de pulsão de morte, tal como soube elucidar Freud. O século XXI demonstra que não há neurose social e sim psicose social. 

As certezas delirantes do negacionismo que voltam a colocar o Ocidente central no abismo constituem um testemunho logrado dessa questão. Mais além das distintas hibridações que configuram a agenda das ultradireitas atuais, o elemento comum que encontramos nas mesmas, é que a Democracia é um esconderijo para os intrusos do mal que respondem a um Outro sem regras, e que, portanto, há que destruir.

É o verdadeiro êxito da operação paranoica, legitimar seu ódio desmedido e obsceno com imputações e denúncias permanentes a um suposto Outro sem Lei.

Dito de outro modo, na paranoia há uma inversão espetacular, seu ódio querelante é a resposta hostil a um Outro que nos ameaça. Um Outro inventado pela própria estrutura paranoica. Por isso, as Memórias de um psicopata de Daniel Paul Schreber lidas por Freud puderam ser pensadas como uma prefiguração da ideologia do nacional-socialismo.

Por sua vez, como já o demonstra a pandemia, os polos negacionistas de clara vocação paranoica constituem uma nova superfície de inscrição para o devir ultradireitista.

Publicado em Página 12, 28 de novembro de 2021.

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