A crise espanhola se tornou um espelho fiel de uma crise maior: a crise europeia. Ambas se veem acossadas pelo espectro da desintegração.“Castilla miserable, ayer dominadora,
desprecia cuanto ignora.”
Antonio Machado
“Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são desgraçadas em sua própria maneira.” Assim começa a grande novela de Leon Tolstoi, Ana Karenina. Na Europa, a crise da Grécia é distinta da crise de Portugal e esta se diferencia, por sua vez, da crise irlandesa, ou da crise italiana. Mas a crise na Espanha é um espelho da crise europeia. Explicarei o porquê.
A Espanha, como toda a Europa, se compõe de pequenas regiões díspares: algumas têm uma economia robusta; outras, uma economia débil. A moeda única, o euro, dissimulou, durante mais de uma década as profundas diferenças entre o centro e a periferia, entre a seriedade fiscal e o “viva la Pepa ” [[N.T.: “Viva la Pepa” é uma expressão que quer dizer “vale tudo”, “oba oba”, e teve origem na promulgação da Constituição liberal espanhola de 1812, chamada de La Pepa.]]. A moeda única foi, para os mais fracos, “plata dulce ”[[N.T.: Expressão que quer dizer enriquecimento ilícito; refere-se ao dinheiro a mais que decorre de licitações superfaturadas em que as empresas vencedoras são presididas por amigos ou familiares de dirigentes do governo.]]. Correu nelas o dinheiro, os empréstimos com juros muito baixos, o que lhes permitiu financiar a especulação (sobretudo a imobiliária).Quem viaja pela Espanha pode constatar que regiões outrora pobres se cobriram de casas novas, e que em lugares recônditos se erguem projetos tão faraônicos quanto inúteis, impulsionados por políticos locais e bancos regionais – as hoje desafortunadas Cajas [[N.T.: Instituições de crédito; muitas vezes funcionam como cooperativas de crédito.]]. Verá o turista novos aeroportos onde, até hoje, não aterrizou nenhum avião, monumentais estruturas cujas funções se ignora, estradas que vão de nada a lugar algum, e bonitas pontes que conectam margens já conectadas. Hoje, muitas dessas regiões estão em bancarrota e podem esmola ao governo central que, por sua vez, pede dinheiro emprestado a investidores a taxas muito altas, ou, na sua falta, ao Banco Central Europeu. As bonitas casas estão vazias; suas hipotecas, não pagas; e se multiplicam os bairros e povos fantasmas. Olhando para trás, o visitante se dá conta de que a prosperidade espanhola dos últimos anos tem sido uma lamentável quixotada.
Em Madri, o governo central está preso entre a cruz e a espada [[N.T.: “atrapado en una morsa”, no original.]]: por um lado, apertam-no “os mercados” do nosso mundo global (isto é, os investidores estrangeiros); por outro lado, vê-se pressionado pelas regiões (que conseguiram autonomia) – tanto as ricas como as pobres. Essas últimas necessitam desesperadamente de ajuda. As outras se veem tentadas pelo separatismo, descolando-se do governo central e desentendendo-se com suas irmãs necessitadas. O país basco tem uma situação fiscal saudável, em grande medida porque percebe seus próprios impostos e não contribui para o fisco central. Os catalães, que financiam esse fisco sem receber em retorno benefícios proporcionais, querem se desprender do Estado central como fizeram os bascos, porque se continuarem como estão, de fato subvencionam as regiões débeis da periferia. De sua parte, o governo de Madri quer impor sua vontade centralizante às regiões, redistribuindo benefícios das regiões prósperas às mais pobres, sob a condição de uma maior “austeridade”, como gesto de apaziguamento dos emprestadores estrangeiros. Esta política – a de Mariano Rajoy – gera o receio de todos dentro da Espanha, sem terminar de convencer “os mercados”. Mais ainda, sua política somente consegue exacerbar a depressão nas regiões, aumentar o peso fiscal, empobrecer o povo e fomentar a desocupação, que se transformou, em especial para os jovens, em um drama tremendo (entre os 16 e os 24 anos, a taxa de desemprego superou 50%). A moeda única – o euro – não faz mais que agudizar as tensões. Ao não poder desvalorizar sua própria moeda (a antiga peseta) não resta à Espanha outro remédio que a chamada “desvalorização interna”, que não é outra coisa que uma drástica diminuição das rendas populares, tanto diretos (salários) como indiretos (benefícios sociais).
A situação aqui apresentada é claramente insustentável a partir de três pontos de vista: econômico, social, e político. No econômico, o peso da dívida aumenta (à medida que a arrecadação diminui) e a atividade econômica se encontra em queda livre. No social, a desocupação é tão pavorosa que a população reage com ações de protesto cada vez mais severas, com ocupação de prédios e latifúndios no sul do país (como aconteceu na Catalunha antes da Guerra Civil), com a inversão perversa da relação intergeracional (sobre isso, darei um exemplo) e com a eterna válvula de escape, ou seja, a emigração. Em suma, a Espanha se tornou um país que se quebra em pedaços, cuja população perdeu o futuro, de onde muitos jovens se vão, e os que ficam voltam para a casa dos pais ou dos avós, onde vivem das pensões (cada vez mais magras) dos idosos. Como prova basta o exemplo: os asilos espanhóis hoje estão vazios, porque as famílias trazem os idosos para suas casas para viverem todos – agregados e empobrecidos – das aposentadorias dos velhos.
Nestas condições, para que continuar com um só país? Se bascos e catalães estão tentados a “sair” da Espanha em um “salve-se quem puder”, não têm a mesma tentação que hoje se espalha pela Alemanha de “sair” da Europa? E as outras regiões mais débeis, o que ganham seguindo acopladas a um Estado central que as oprime sem lhes dar as condições de recuperação? Um país e um continente outrora orgulhosos hoje marcham para o próprio óbito.
Em seu ensaio, La España invertebrada, José Ortega y Gasset traçou o particularismo espanhol a partir de uma longa decadência que começou em 1580. Ortega se perguntava por que existem separatismos, regionalismos e nacionalismos que procuram uma secessão étnica e territorial na Espanha dos anos 20 do século passado. A precondição para chegar a uma resposta consiste em reconhecer a falta de um agente totalizador que lhe permitiria apresentar um programa nacional. Este “projeto incitador de vontades” foi, precisamente, o projeto imperial espanhol: “A união se faz para lançar a energia espanhola aos quatro ventos, para inundar o planeta, para criar um Império ainda mais amplo. A condição de possibilidade da união nacional peninsular é a projeção política imperial mais além da península mesma: o dogma nacional é o sinônimo de uma política internacional. Séculos mais tarde, sem império e depois de quarenta anos de ditadura, o projeto europeu deu nova energia à Espanha. A União Europeia ajudou muito na transição à democracia, mas sobretudo freou a tendência secular da Espanha de fragmentação. A crise europeia atual, que faz da Europa uma zona invertebrada, voltará a exacerbar a fragmentação regional na península ibérica.
“Enquanto a Espanha teve empreendimentos a alavancar e se afinava um sentido de vida em comum sobre a convivência peninsular”, dizia Ortega, a unidade nacional pôde manter-se. Não obstante, a partir de 1580 se iniciou um longo processo de decadência e desintegração que Ortega considerava como o avanço do particularismo, isto é, um incremento da autonomia das partes e um estreitamento de sua capacidade de se imaginar a si mesma como órgãos integrantes de uma estrutura superior. O particularismo se expressa regionalmente nos nacionalismos basco e catalão, mas também entre os extratos que compõem a sociedade: classes e grupos. Seja em termos políticos ou sociais, o particularismo determinou que a Espanha fosse “antes que uma nação, uma série de compartimentos estanques”.
Na crise atual do capitalismo tardio, já não é a Europa que salva a Espanha, mas é a Espanha que anuncia a recaída da Euro