A crise do fim do mundo, mas, que mundo?

O mundo que hoje acaba é um mundo insustentável e, ademais, injusto. O mundo que se prepara para substitui-lo é um mundo incerto. A Europa é hoje um terreno desta transição entre uma globalização disfuncional e outra alternativa.<img143|center>

Atenas e Roma foram o berço da Europa. Amanhã, serão sua sepultura. A União Europeia e sua moeda única – o euro – correm um sério perigo de desintegração com um iminente calote grego e uma provável insolvência italiana. Os acontecimentos se precipitam com tal velocidade que, quando esta nota for publicada, é provável que um desenlace, talvez catastrófico, já seja um fato consumado. Corresponde tomar distância e fazer uma análise das diferentes dimensões da crise, com se despelássemos uma cebola, camada por camada, para chegar às causas mais profundas de tanta desordem.

Primeiro, sabemos que a crise se desencadeou com a insolvência de um pequeno país balcânico, na periferia da U.E.: a Grécia. Junto com outros países do sul da Europa, a Grécia ingressou de forma tardia na União e adotou a moeda única. Porém, suas contas não estavam em ordem; e nem seu sistema de apadrinhamento político, nem sua vasta rede de subsídios, nem sua arrecadação de impostos qualificavam o país como candidato viável da União. O governo heleno de então dissimulou estas falhas com uma fraude contábil. De sua parte, os membros “sérios” da U.E. – em especial, a França e a Alemanha – fizeram vista grossa e seus bancos se mostraram dispostos a conceder enormes créditos ao erário grego, que, por sua vez, os distribuía com displicência a diversas clientelas. Os partidos políticos somaram-se ao jogo ao prometer e distribuir regalias a quem neles votasse. Criou-se, assim, uma trama de interesses sustentados pela dívida. Esta aumentava sem um crescimento correlativo da economia local – nem em produção, nem em produtividade, nem em competência com os sócios maiores dessa União de partes díspares. Convém aclarar aqui que a União Europeia foi sempre uma união pela metade, isto é, uma união monetária mas não soberana, em suma: uns Estados (des)Unidos da Europa, sem um governo central com autoridade suficiente, como para transferir recursos, unificar normas de comportamento e disciplinar os remos.

A crise financeira global de 2008 deitou por terra estes arranjos ao frear internacionalmente os fluxos de crédito. Na Europa, a cadeia se rompeu por seu elo mais fraco – a Grécia – e debilitou outros elos frouxos – Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. Esta cadeia afetou, e afeta, não só os devedores, mas também os credores (os grandes bancos), pois, como se diz, “se deves um milhão de dólares ao banco e não pode pagá-lo, tens um sério problema; mas se a ele deves um trilhão, o sério problema é do banco”. Nessas circunstâncias, a Grécia deparou, como economia e como sociedade, com uma cruel verdade: apesar de que sua incorporação (fraudulenta) à União Europeia tenha lhe regalado com uma década de superficial prosperidade, quando chegou o momento de pagar e de não postegar suas dívidas, deu-se conta de que o euro (versão local do antigo uno-a-uno argentino) condenava-a a um status de terceiro mundo e, portanto, ao destino de uma cura desordenada de sua penúria por meio do calote, de uma possível saída do euro em favor do dracma, e de uma subsequente desvalorização, com a sequela de trauma social que esta opção implica. Hoje, o fantasma do corralito de Domingo Cavallo ronda o Partenão.

Para evitar esta saída “à Argentina”, os membros “sérios” da União – em particular a disciplinada e disciplinadora Alemanha – impuseram à Grécia medidas de austeridade tão penosas quanto o calote, mas com uma diferença: no calote, pagam justos e pecadores; mas na alternativa condicional do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional os grandes pecadores – os bancos – saem mais airosos, por duas razões: (1) o corte de seus empréstimos é menor, e (2) ganham tempo para digerir suas perdas. Neste penoso compasso de espera, encontra-se Atenas. Em termos econômicos, os velhos títulos nacionais valem muito pouco e os novos que poderia emitir carregariam juros proibitivos. Somente um resgate até as últimas do Banco Central Europeu (emitindo garantias e moeda de seu barril sem fundo) salvaria a Grécia do calote. Porém, este banco não está respaldado pelo governo europeu, mas se vê empurrado por vários deles – algo assim como um marido com 17 sogras. Em termos sociais, na Grécia aumenta o protesto: greves, preseguições, manifestações e violência nas ruas se multiplicam. A estas, soma-se a emigração dos mais capazes e dos mais ágeis. Na ordem política, a classe dirigente enfrenta cidadãos que não lhes creem e que gritam, como outrora na Argentina e hoje na Espanha, “Que se vão embora todos!”. Nestas condições, o governo não governa. Encontra-se preso, por um lado, pelo descontentamento popular e, por outro, pela pressão dos investidores (hoje chamados “os mercados”), dos bancos credores e de seus representantes nos países fortes da União.

Há mais: ao se prolongar esta situação sem uma saída clara – catártica ou não – produz-se o “contágio” de outros países fracos, neste caso, a Itália. Os “mercados” – guiados pelo temor – deixam de comprar títulos desses países, ou pedem juros exorbitantes, ou se refugiam em outros investimentos (títulos de países emergentes, ouro, propriedades). Em uma perfeita profecia autocumprida, produzem uma “corrida” fora de alguns países de maior peso (a Itália é a terceira economia europeia e a oitava do mundo), e os põem em risco, primeiro de liquidez e, depois, de insolvência. Assim, passa-se de uma crise regional a uma crise mundial. Pelo momento, a Europa aproxima-se repetidas vezes do abismo para dar um passinho atrás depois.

Espero ter retirado a primeira camada da cebola. Passemos, pois, à segunda. Aqui, não se trata de dívida ou de déficit financeiro, mas do vazio institucional e de um déficit de democracia. Esta camada trata nada menos que de uma profunda crise de soberania. Na teoria política que se desenvolve precisamente na Europa a partir do século XVII até o XXI, a partir da direita para a esquerda, desde Hobbes e Bodin, passando por Donoso Cortés e Karl Marx, até Carl Schmitt e Giorgio Agamben, o “momento soberano” é o Estado de exceção, quando uma crise profunda, isto é, existencial, requer que os atores suspendam seu agir político normal e tomem medidas extraordinárias. Na prática, isto implica suspender as instituições representativas (estamentos, parlamentos, ou partidos, e até a própria constituição) em favor de uma instância “externa” capaz de tomar decisões não discutíveis, ou seja, autoritárias. É o momento de uma ditadura temporária ou sine die, pacífica ou violenta, pela razão ou pela força, com respaldo popular ou não.

De acordo com estas considerações, a Europa de hoje apresenta duas características especiais. Em primeiro lugar, trata-se de uma federação de Estados soberanos, mas com soberania limitada – algo assim como os artigos da confederação norteamericana antes da sanção da Constituição dos Estados Unidos (entre 1776 e 1787). Do ponto de vista da soberania, a Europa é um semi-estado alinhavado por tratados, em transição permanente, o que significa um oximoro. Em segundo lugar, semelhante remendo não tem prevista nem sua dissolução nem soluções de emergência para evitá-la. E mais, a rede de tratados e convenções europeus foram dispostos por elites políticas e tecnocráticas sobre as costas dos povos, sem discussão pública e sem mecanismos de eleição democrática. Os tratados e acordos foram submetidos ex post facto aos cidadãos de alguns países membros por meio de plebiscitos ganhos por escassa margem, com muita manipulação, e aprovados pelas diferentes cidadanias (não todas por certo) a contragosto.

A Europa atual foi construída por meio e nas costas dos respectivos povos. Carece de accountability, esta palavra muito comum nos EUA que não tem tradução direta nem em francês, nem em italiano, nem em alemão, nem em castelhano. Uma tradução aproximada seria “responsabilidade”, ou “obrigação de prestar conta”. Trata-se nada menos que do compromisso das instâncias gestoras da coisa pública diante dos cidadãos de um país ou região, diante dos usuários de um serviço, ou diante dos consumidores de um produto. Muito reveladora a respeito foi a reação dos chefes de governo europeus diante da tentativa do então primeiro ministro grego, Papandreu, de levar a referendo para submeter à decisão de seu povo de aceitar ou não as severas condições impostas pelos credores de seu insolvente país. Os chefes de governo alemão e francês se consideraram ofendidos, traídos e indignados diante da tentativa de praticar a democracia em condições de emergência. Obrigaram ao premiê grego a desdizer-se e logo a renunciar, para ser substituído de forma não democrática, por um banqueiro. Algo similar está acontecendo neste momento na Itália, onde a crise financeira conduz a classe política desse país, acossado pelos “mercados”, a fazer renunciar ao poderoso porém muito questionado presidente do Conselho Silvio Berlusconi em favor de um governo técnico nas mãos de um funcionário econômico internacional. Para resumir: diante de uma severa emergência, a Europa suspende o domínio dos políticos e acode a uma série de governos técnicos. É a hora da tecnocracia, que sucede a democracia partidária nos países em risco de bancarrota.

Não obstante, em toda a história política universal, não existe caso exitoso algum de governos técnicos de emergência em lugar de uma liderança política forte, de corte ditatorial, no caso de salvar o status quo, ou revolucionário, no caso de mudar radicalmente o sistema. Pensemos o seguinte: o novo primeiro ministro grego Papademos tem um mandato de 100 dias para dispor das drásticas medidas de austeridade que os credores exigem, mas que nem a classe política grega nem o povo grego em intempérie aceitam ou desejam. Para isso, os 100 dias de Papademos não serão os 100 dias de Franklin Delano Roosevelt, disposto a tirar os Estados Unidos da prostração econômica dos anos de 1930. Roosevelt era um político de forte personalidade, respaldado pela maioria de seu povo e eleito democraticamente. Comparemos as declarações de ambos em assumir o poder. F. D. Roosevelt: The only thing we have to fear is fear itself (“A única coisa que devemos temer é o próprio medo”). Papademos: I am confident that the country’s participation in the eurozone is a guarantee of monetary stability (“Estou confiante de que a participação do país na eurozona é uma garantia da estabilidade monetária”). No primeiro caso, escutamos a voz estrondosa de um líder; no segundo, a frase chata de um técnico. Porém, se é certo que não se pode comparar Roosevelt e Papademos, tão pouco saem bem pareados os atuais líderes europeus quando comparamos Silvio Berlusconi com Alcide De Gasperi, Angela Merkel com Konrad Adenauer ou Helmuth Kohl, Nicolas Sarkozy com Charles De Gaulle ou Francois Mitterrand, José Luis Zapatero com Felipe González, ou David Cameron com Winston Churchill. Diante do perigo, a velha Europa acudia a um ditador. A Europa atual acode a um contador. Para países ricos ou complacentes como são os europeus, isso representa apenas um miserável progresso. Em resumidas contas, a partir do ponto de vista político e social geral, na Europa estamos diante do fim de um Ancien Régime, um sistema socialmente custoso, politicamente disfuncional e economicamente insustentável.

A terceira camada da cebola que convém despelar é a parte mais profunda da crise atual: a desigualdade global e o desequilíbrio estratégico. Nossa atual versão da globalização cobra força quando, na queda dos sistemas socialistas, o alto capitalismo encontrou nas massas asiáticas (outrora encerradas em sistemas totalitários) mão de obra barata que passou a ser o verdadeiro exército industrial de reserva. A produção material mudou-se para essa região do planeta, cuja população soma mais de dois bilhões de pessoas. Quando essa população se voltou para a produção material, aumentaram as possibilidades de mobilidade social de centenas de milhões. Ao mesmo tempo, no primeiro mundo, diminuíram correlativamente as perspectivas de uma vida melhor para vastos setores das classes médias e baixas – em plena decadência da mal chamada “economia de serviços”. Por um período limitado (mais ou menos uma década), estas populações puderam manter seu curso de vida graças ao crédito barato e aos subsídios provenientes dos países produtores emergentes. Esgotado o crédito barato (refletido na memória do produto bruto doméstico), o sistema entrou em crise. Os economistas mais sérios a qualificam, com razão, como uma crise de demanda.

Para manter o sistema, as autoridades dos principais países fizeram todo o possível para sustentar a capitalização dos rendimentos e a socialização das perdas. A consequência de tais políticas foi a criação de um mundo ao revés, onde os ricos aumentam seus privilégios e os demais se encarregam das perdas. Estes desequilíbrios indicam que o sistema do capitalismo global entrou em uma fase de crise terminal em que as relações de produção travam ou distorcem o potencial produtivo e a incorporação produtiva da maioria da população. Para sair de semelhante atoleiro, será necessário uma forte redistribuição da riqueza para baixo, tanto em países avançados como nos emergentes, a socialização de setores importantes de serviços de infraestrutura, e uma liderança forte e firme, com apoio popular e capacidade de prestar contas à maioria da população. Nesta perspectiva, as outras reformas que hoje se vislumbram são paliativos de curto prazo destinados a postergar o desenlace inevitável e final.

Aqui chegamos ao miolo da questão. Como o espanholzinho de Antonio Machado, o menino europeu que nasce nestes tempos tem um porvir inquietante pela frente, “entre uma Europa que morre e uma que boceja”. No melhor dos casos, o sistema que políticos, banqueiros e tecnocratas querem salvar não oferece boas perspectivas para os jovens. O sistema atual, desigual e injusto, não é capaz de vender esperança nem de vender futuro. Em sua ilhazinha de soluções técnicas, os dirigentes e outras elites não se dão conta que se está preparando uma tsunami social de lado a outro do globo. Nas potências emergentes, surge uma onda de expectativas crescentes. Nas potências decadentes, surge outra onda de raiva por promessas não cumpridas e esperanças frustradas. Quando se juntarem as duas ondas, formarão uma muito grande, incontrolável, que varrerá com as estruturas existentes. Os que hoje expropriam o poder, os privilégios, a boa vida e a esperança serão expropriados, por sua vez. Porém, como dizem os piqueteiros de Wall Street, ao fim e ao cabo, são só o um por cento.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *