O que um déficit fiscal esconde?

O déficit fiscal encobre duras disputas de interesses. A ocultação é impulsionada porque muitos dos interesses em jogo não podem ser defendidos abertamente, tanto privilégios ou vantagens para alguns como prorrogações ou prejuízos para a maioria da população. Um véu de opacidade torna difícil conhecer como é decidida a composição do gasto público, a estrutura das rendas do Estado e a forma de financiar o déficit fiscal. Se esconde o impacto e se escamoteia o custo de oportunidade de cada uma dessas críticas decisões. Em democracias capturadas é uma das maneiras como se consegue impor flagrantes desigualdades.

Vale explicitar que um déficit fiscal não é um fato isolado do resto de fatos que caracterizam um sistema econômico. Pelo contrário, a existência de déficits fiscais está estreitamente relacionada com uma diversidade de fatores que os geram, reproduzem, aumentam ou reduzem. Esses fatores transcendem a esfera do meramente econômico; têm suas raízes em uma complexa trama de interesses e necessidades que disputam entre si para impor-se e prevalecer.

Um déficit fiscal existe quando os gastos públicos superam as rendas públicas. Fala-se de um déficit fiscal primário quando não se inclui nos gastos o pagamento de juros e amortizadores de dívidas antes contraídas. Se são incluídos esses pagamentos financeiros, fala-se de déficit total ou déficit fiscal a seco.

Diferentes tipos de déficits

Uma questão crítica que poucas vezes se explicita é que existem diferentes tipos de déficits, não só por sua dimensão (maior ou menor) mas também por sua natureza (composição tanto do gasto público, das rendas públicas e da forma de financiá-los). O que devemos conhecer é que cada tipo de déficit fiscal gera diferentes impactos sociais e econômicos os quais podem reforçar a sustentabilidade da marcha de uma sociedade ou se somar aos efeitos do processo de concentração e desigualdade predominante que provoca recorrentes situações de instabilidade e crise.

Há déficits fiscais que vão de moderados a grandes. Seu tamanho vai associado a seu grau de funcionalidade ou de disfuncionalidade: quanto maior o déficit fiscal, maior a disfuncionalidade que permeia sobre o resto do sistema econômico. Há os que apregoam que é imperativo apontar sempre para ter superávit fiscal, mas outros destacam que isto não é necessariamente positivo em países em desenvolvimento. Um moderado déficit fiscal pode dinamizar a economia ao agregar-lhe uma margem adicional de consumo ou investimento por meio de um gasto público que supera o arrecadado como renda pública.

Esse diferencial de maior gasto público que rendas se cobre como endividamento ou com emissão monetária que, se for manejada com prudência, não deveria gerar maiores transtornos mas um impulso dinamizador ao funcionamento econômico. Pelo contrário, se o déficit fiscal crescer desmesuradamente e se tornar permanente, o grau de disfuncionalidade seria cada vez maior porque as fontes para cobri-lo (maior pressão tributária, maior emissão monetária ou um grave encarecimento e disponibilidade de endividamento adicional) têm destrutivos efeitos sobre a atividade econômica, a estabilidade dos preços, a sustentabilidade financeira e a afetação da soberania decisória.

Até aqui temos dito que um déficit fiscal grande e permanente é insustentável, quanto que pequenos déficits poderiam ser benéficos se fossem administrados apropriadamente. No que não temos ainda incursionado é em considerar como se geram os distintos tipos de déficits e qual é o impacto social e econômico de cada tipo de déficit, incluindo custos de oportunidade[1]. Isto nos leva a nos referirmos sobre a composição do gasto público, das rendas públicas e das opções que existem para financiar um déficit fiscal.

Isto é, resulta absolutamente insuficiente considerar tão somente a envergadura do déficit já que por trás desse total (dessa variável agregada, como dizemos os economistas) se esconde o que realmente importa analisar e resolver: as diversas disputas de interesses e necessidades entre os diferentes atores que formam cada sociedade. Essas disputas se resolvem segundo o poder que cada grupo de atores detém. Os mais poderosos têm a capacidade de impor seus interesses por sobre os demais, o que não quer dizer que seus interesses sejam os únicos considerados mas que são os que mais preeminência lograram. As decisões orçamentárias não se tomam sobre a base de uma pessoa, um voto, mas sobre a diferente capacidade de cada ator de influir sobre elas.

Desse modo, a composição do gasto público, das rendas do Estado e de como se financia o déficit fiscal expressam impiedosamente a correlação de forças que predomina no país e nas jurisdições subnacionais (cidades e municípios). E isto, por mais que se procure ocultá-lo, deixa favorecidos e prejudicados. O poder de impor distribui desigualmente os recursos e a carga de responsabilidades; estabelece e reproduz privilégios e prorrogações.

A composição do gasto público

Toda dotação de gasto público serve para resolver situações de carência e também materializar potencialidades latentes que requerem assistência do Estado. Com recursos públicos se atende a uma enorme diversidade de setores, entre muitos outros, a infraestrutura viária, comunicacional, de irrigação e o manejo de bacias hídricas, serviços sociais como educação, saúde, aposentadorias e pensões, destinações a setores vulneráveis, segurança cidadã, saneamento ambiental, administração pública central e Justiça, Poder Legislativo, Forças Armadas, pagamento de amortizações e juros da dívida pública. Não são poucos os setores que disputam por recursos sempre finitos, o que exige estabelecer prioridades entre setores e no interior de cada um.

Assim, a correlação predominante de forças (mediada pela colonização de mentes praticada pelo poder econômico com a cumplicidade de certos estamentos da política, das mídias, da Justiça e do sistema educacional) priorizará setores que beneficiam aos já privilegiados frente aos que assistem a grandes massas populacionais. Com base nisso, capturarão dotações do gasto público para seu próprio benefício. Existem centenas de milhares de casos através dos quais esse sórdido estabelecimento de prioridades se materializa. Um par de exemplos serve para ilustrar esse ponto.

Com frequência, são grandes corporações que conseguem que recursos do orçamento nacional financiem atividades vinculadas a seus interesses, sejam caminhos, facilidades portuárias, certo tipo de ciência e tecnologia, entre muitas outras. Esses investimentos lhes desincumbem de custos indiretos, melhorando suas rentabilidades. Certamente existem outros usos alternativos para esses recursos, como saúde, educação, saneamento ambiental, moradia popular, financiamento de pequenas empresas, outros tipos de aplicações da ciência e tecnologia mais ligados a setores médios e populares. Não é que se tenha que financiar só uns e nada para os outros; o que está em jogo é a proporção de recursos que se dirige aos setores majoritários vis a vis os já de por si privilegiados ou com maior capacidade de se sustentar por si mesmos.

Vejamos outro exemplo de prioridades dentro de um setor. Suponhamos uma situação onde o país conta com uma aceitável rede principal de caminhos, mas com uma muito pobre rede de caminhos secundários que travam a mobilização de pessoas e de produtos. Quem decide quais caminhos secundários construir? Caminhos que servem a poderosos grupos econômicos, a territórios relativamente mais avançados ou, alternativamente, a pequenos produtores rurais, oficinas artesanais em povos atrasados ou comunidades que poderiam ser potencializadas ao poder se integrar ao sistema via nacional. Serão financiados caminhos secundários que prejudicam o meio ambiente e beneficiam especuladores imobiliários?

Muitíssimas decisões são tomadas anualmente para definir a composição do gasto público e uma grande parte delas são pouco transparentes com o propósito de encobrir interesses indefensáveis a céu aberto. Algumas dessas continuam destinações de anos anteriores porque setores poderosos se entrincheiraram para preservá-las ou, talvez, por inércia, sem que se considerem outras opções com melhor impacto socioeconômico e ambiental.

A composição das rendas públicas

Outra cara do déficit fiscal vem dada pela composição das rendas públicas. Dentro das rendas públicas, destacam-se os impostos, taxas e contribuições que o Estado tem a prerrogativa de impor, lucros de empresas públicas, mais o endividamento público que se contrai para financiar obras de infraestrutura social e produtiva. Aqui, outra vez, existem setores favorecidos e prejudicados.

Em nossos países, o sistema tributário tende a ser grosseiramente regressivo; os que recebem menos renda e dispõem de menor riqueza pagam proporcionalmente mais que os setores afluentes. Isso é assim por vários motivos, entre os quais há dois que sobressaem. De um lado, os impostos que predominam são os mais simples de impor e arrecadar, aqueles que taxam o consumo de maneira uniforme sem diferenciar entre consumidores. Esses impostos afetam muito mais os setores populares e médios que setores afluentes porque destinam uma maior parte de seu orçamento para consumo. Por outro lado, aumenta enormemente a regressividade tributária quando os setores de maiores rendas e riqueza evadem sua responsabilidade tributária, seja utilizando resquícios da legislação vigente ou diretamente incorrendo em delitos apenados por lei. Para isso, contam com a cumplicidade de entidades financeiras, guaridas fiscais e suas equipes de advogados e contadores especializados em burlar leis tributárias.

Ocasiões há em que ocorrem também penosos retrocessos quando países que lograram avançar para um sistema tributário mais equitativo impondo tributos adicionais a setores afluentes veem como esses avanços são revertidos por governos neoliberais que tomam o controle do Estado.

Fica claro que o déficit fiscal não só depende do nível e da composição do gasto público, mas também do nível e da composição das rendas que o Estado é capaz de arrecadar. Falar de ajustar o gasto público para baixar um déficit fiscal sem considerar como melhorar a progressividade do sistema tributário e o tipo de endividamento que se contrai é uma mal-intencionada política econômica, já que oculta enormes desigualdades do lado da carga tributária.

O financiamento do déficit fiscal

O que acontece, então, quando se produz um déficit fiscal? Salvo que um país se declare em cessação de pagamentos, caberá financiá-lo, isto é, encontrar uma forma de fechar a brecha entre rendas e gastos públicos. A maneira de fazê-lo costuma ser uma combinação de emissão monetária para pagar a credores locais e de novo endividamento em moeda estrangeira para refinanciar dívidas com credores estrangeiros (particulares, países ou organismos internacionais). Poucas vezes se estabelece um imposto adicional de emergência aos setores afluentes que evita contrair mais dívida ou realizar maior emissão monetária.

Cada modalidade de financiar um déficit fiscal provoca consequências e impactos de diversa ordem, tanto sobre o sistema econômico (uma desmedida emissão monetária soma pressões a processos inflacionários de natureza estrutural, enquanto que postergar pagamentos a credores locais tendo a deprimir a atividade econômica), como também sobre a soberania decisória do país (grande endividamento traz em si maiores custos financeiros e condicionalidades impostas pelos credores e qualquer cessação de pagamentos restringe o acesso a novos endividamentos).

Estas soluções são de curtíssimo prazo; isto é, uma vez produzida a brecha fiscal se busca como liquidá-la. Não obstante, para evitar que se reproduza e perpetue um déficit de envergadura haverá que optar por muito diferentes tipos de soluções.

Opções para evitar grandes déficits fiscais

O primeiro a deixar claro é que não há uma só forma de resolver um déficit fiscal. Há os que se erigem como detentores de uma suposta única verdade neste campo e procuram impô-la. Não há tal coisa como uma só verdade econômica sem outras opões possíveis. Em verdade, existe uma diversidade de opções em função das circunstâncias e fases de desenvolvimento que condicionam cada situação. Aos efeitos dessas curtas linhas e com as desculpas do caso, a reduziremos a duas vertentes principais.

Soluções neoliberais

Uma vertente é a do neoliberalismo, que apresenta reduzir o déficit fiscal a partir do ajustar o gasto público, muito particularmente aquelas dotações que não afetem interesses dos setores que sustentam a marcha neoliberal. Esse critério se projeta também em nível da distribuição da carga tributária. Sustentam que, sacrificando esse tipo de gastos públicos e protegendo rendas de setores afluentes, se gerariam condições de estabilidade e crescimento. Não reparam que o que se sacrifica são necessidades básicas que trazem bem-estar geral e, junto a isso, se destrói boa parte do tecido produtivo formado por pequenas e médias empresas.

Haverá menos ou pior saúde, educação, saneamento, ciência e tecnologia, aposentadorias e pensões, subsídios a setores vulneráveis, empregos e salários na administração pública. Ademais, como estas políticas se complementam com drásticos aumentos de tarifas de serviços básicos (gás, água, eletricidade, taxas municipais, entre outros), o aumento de custos que só as grandes empresas de natureza oligopólica podem trasladar plenamente a preços, mais uma abertura não gradual de importações, termina asfixiando pequenas e médias empresas. Como se fosse pouco, a isto se agrega uma política de altas taxas de juros para esfriar a economia, que não por casualidade serve como mecanismo de transferência de rendas ao setor financeiro, o maior beneficiário das políticas neoliberais. O resultado dessa combinação de fatores é bem conhecido: um maior desemprego, perda de poder aquisitivo de salários, queda do mercado interno e de arrecadação tributária, necessidade de seguir aprofundando o ajuste, tudo desemboca na aceleração do processo de concentração de riqueza e sua contra-face de tremendas desigualdades.

Em síntese, esta vertente neoliberal encara os déficits fiscais levando o peso de sua solução para os ombros de setores médios e populares, cujo bem-estar passa dramaticamente pelo ajuste das dotações do gasto público que financiam seus direitos e pela consagração de uma estrutura tributária regressiva que perfura suas rendas. Enquanto tanto os setores afluentes preservam seus privilégios que, em um contexto de debilidade do resto de atores, possibilitam fazer crescer de forma exponencial seus patrimônios.

Soluções transformadoras

Outras muito diferentes opções para enfrentar um déficit fiscal se focam em medidas orientadas para proteger direitos e necessidades de setores médios e populares. Estas medidas se inscrevem em um esforço coletivo por transformar e não restaurar as circunstâncias que geraram os problemas, entre outras, muitas das seguintes:

  • Diante de um déficit fiscal, não afetar as dotações de gasto público que financiam direitos de setores médios e populares mas aquelas que beneficiam setores afluentes que podem se valer por si mesmos.
  • Melhorar sem exceção alguma a efetividade das dotações de gasto público estabelecendo eficientes modalidades de aplicação.
  • Transformar o sistema tributário para redistribuir a carga tributária de modo a fazê-lo definitivamente progressivo em sua normativa e aplicação.
  • Aumentar a arrecadação tributária desmontando os mecanismos utilizados para evadir o pagamento de impostos e a fuga ilegal de capitais.
  • Controlar a emissão monetária como parte de uma política econômica que promova a produção e o crescimento orgânico da economia.
  • Impedir que formadores de preços de natureza monopólica ou oligopólica abusem dos demais.
  • Praticar um prudente e seletivo endividamento orientado a financiar investimentos da economia real que assegurem crescimento orgânico.
  • Transformar a matriz produtiva para evitar estrangulamentos do setor externo, com o que se reduz a pressão de acudir a maior endividamento e, ao mesmo tempo, ajuda para maximizar localmente os impactos multiplicadores de novos investimentos com impactos positivos na arrecadação tributária.
  • Haverá também que introduzir equidade nas cadeias de valor de modo a fortalecer as pequenas e médias empresas participantes, muito mais intensivas quanto a criação de empregos e menos propensas a permitir a fuga capitais que as de maior envergadura.

Seria um erro encerrar estas curtas linhas sem reconhecer explicitamente outros fatores que vão mais além do econômico e resultam absolutamente críticos para enfrentar as soluções neoliberais diante de um déficit fiscal. Soluções de natureza transformadora necessitam de organizações dos setores médios e populares capazes de incidir de forma decisiva sobre as políticas públicas e a destinação de recursos do Estado, espinha dorsal do esforço de liberar democracias que tenham sido capturadas por poderosas minorias. De igual modo, é de todo determinante enfrentar a hegemonia cultural que predomina em nossos países por meio de uma permanente ação de esclarecimento sobre o que se oculta respaldando uma variedade de vozes genuínas e não tão somente ecos das hegemonias. Organização e esclarecimento, sustento de democracias plenas.

 

[1] O custo de oportunidade reflete o que se teria podido realizar se tivéssemos aplicado de outra forma os recursos disponíveis.

 

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