Segurança/insegurança em um processo de transformação

O tema da segurança/insegurança cidadã é complexo, controverso, pouco compreendido, cuja resolução exige intervir em muito diversas áreas e dimensões. Sua magnitude e gravidade são objeto de constante manipulação; custa erguer-se sobre os interesses em disputa para fazer da segurança uma política de Estado. Em verdade, a política de segurança faz parte de uma certa trajetória socioeconômica, e é nesse contexto e a partir da perspectiva política predominante que ela é encarada.São muitos e diversos os interesses que coexistem em torno do tema da segurança. Desde os que lucram com a insegurança até os que sofrem com ela, passando pela manipulação para fins políticos ou midiáticos. Esses interesses de fundo buscam incidir sobre as políticas de segurança para levar água para seu próprio moinho. Portanto, esta área de problemas, como outros, não pode ser reduzida a um trabalho somente técnico-profissional para enfrentar atos delitivos mas exige que seja identificado e compreendido todo um tecido de interesses econômicos, políticos e midiáticos que sustentam a segurança e da insegurança.

Cada enfoque sobre a segurança caracteriza “a seu modo” as causas, a dinâmica, a quantia e os efeitos da insegurança e, consequentemente, oferece medidas muito diferentes para enfrentar a insegurança e fortalecer a segurança. Daí que o primeiro a ser esclarecido deveria ser que tipo de segurança se tem em mente como utopia referencial. Isto é, definir o melhor possível a qual estado ou situação aspiramos. O mais provável é que se apresentem muito distintas utopias referenciais segundo sejam os interesses e necessidades que os distintos setores sociais têm. Aqui, então, um primeiro nível de discussão e, ao mesmo tempo, de busca de eventuais pontos de contato entre as diferentes visões de futuro. Em princípio, poderia ser que resulte algo mais factível encontrar coincidências entre um maior número de atores ao redor de um distante futuro desejado, do que com respeito ao presente quadro de divergentes interesses.

De todo modo haverá que abordar o diagnóstico da situação presente e aqui pesarão tanto as diferentes concepções ideológicas e políticas, como os interesses que cada setor procura proteger. Isto complica a intenção de enriquecer o próprio diagnóstico com os aportes de outras perspectivas mas é imprescindível não se fechar na própria visão. Na medida em que se consiga articular várias ou algumas dessas distintas perspectivas, a base de sustentação das propostas de ação que emerjam do diagnóstico será mais sólida e, consequentemente, se poderá contar com um maior ou melhor respaldo político e social.

Em função de como se defina a insegurança, um ponto crítico será determinar se existe mais insegurança hoje que no passado (e, assim sendo, quanto mais), ou se se trata de uma sensação alimentada por uma combinação de interesses e de um desenvolvimento comunicacional que hierarquiza a informação sobre certos crimes acudindo ao cruel e ao instantâneo.

Ao elaborar propostas concretas de ação, elas se estruturam em horizontes no médio e no longo prazo e, por certo, em um crítico curto prazo que é a primeira fase de construção de uma trajetória até a utopia referencial. Este curto prazo deveria se estender como o começo de uma transição para a melhoria da situação presente; alguns denominam como o “enquanto isso” essa bateria inicial de medidas.

Assim como ao definir a utopia referencial e ao precisar a estratégia para dirigir-se para ela faz-se necessário reconhecer o universo populacional atendido com as políticas de segurança, também será imperioso perguntar-se “o enquanto isso para quem?”. Isto é, a quem se dedica a urgência e a prioridade do curto prazo.

Pode se tratar de setores médios muito sensibilizados com o tema da insegurança mas também de setores empobrecidos ou atrasados, agredidos pela simples “cara suspeita” (suspeitos por sua aparência e pela existência de grandes preconceitos). Em geral, o que costuma acontecer é que não se destina urgência nem prioridade de curto prazo a estes setores de baixa ou média-baixa renda, deixando para mais adiante resolver sua situação (se acaso se chegar a resolvê-la). Assim apresentado, o tema se assemelha a um campo minado porque qualquer movimento para um lado ou para o outro poderia gerar uma inesperada explosão.

Uma forma de sair deste atoleiro é procurar situar contextualmente esse “enquanto isso”. Uma coisa é que o “enquanto isso” faça parte de um processo de transformação econômica e social e, outra distinta, que seja apenas mais um momento de um processo que reproduz o status quo, como seria o caso de reforçar o crescimento concentrador que predomina em quase todo o mundo.

Se estivesse em curso um processo de transformação do status quo, então o “enquanto isso” das políticas de segurança deveria fazer parte do esforço de transformação. Assim, por exemplo, se os setores médios estivessem mobilizados pelo tema de sua insegurança (não a dos setores detidos por aparência suspeita), então antes de definir o que fazer com a insegurança no “enquanto isso” haveria que avaliar que papel interpretam esses setores médios na transformação.

Se seu papel não fosse importante, se suas opiniões e sensações não atuassem como caixas de ressonância de esforços destituintes, se seu peso eleitoral fosse depreciável, se sua sensação de insegurança não influísse sobre suas expectativas econômicas (e, portanto, sobre seu consumo, sua poupança, seu investimento), nesse caso a estratégia de curto prazo em matéria de segurança os incluiria como parte constitutiva dos direitos humanos de que todos os cidadãos gozam.

Porém, ao contrário, se esses setores médios fossem capazes de reforçar tentativas destitutivas, se tivessem peso eleitoral, se por temor reduzissem seu consumo e seu investimento, então haveria que se lhes destinar uma prioridade maior no curto prazo já que o direito a segurança que todo cidadão tem seria somado à necessidade de preservar o processo de transformação. Isso sim, haveria que discernir se seu temor da insegurança é objetivo ou induzido para, em função disso, escolher as medidas mais apropriadas. Se a insegurança fosse induzida por campanhas políticas e midiáticas que lucram com a geração de temor, as respostas terão que considerar contra-campanhas acudindo ao esclarecimento, à informação e à educação. Se, em troca, o temor estivesse bem fundado haverá que adotar mais específicas e efetivas medidas de segurança.

Obviamente que as medidas de curto prazo não pode só se referir aos setores médios, o que seria inadmissível. Ainda que não tivessem o mesmo peso político ou econômico, é imperioso resolver com firmeza e igual urgência o “enquanto isso” das grandes maiorias postergadas, incluindo muito particularmente aquelas pessoas detidas por “aparência suspeita”. É que nesses casos não se trata de “sensação” de insegurança mas sim claramente de insegurança sem eufemismos, a que, portanto, exige rápidas e contundentes soluções.

A insegurança associada com a criminalidade não se resolve e, muitas vezes, nem sequer pode ser contida somente com a ação penal (repressão policial, castigo judicial e cárcere); requer medias de prevenção e de ressociabilização dos que cometeram os delitos. Os sistemas penitenciários com sua falta de controle e amontoamento costumam agravar a periculosidade dos internos em lugar de ajudá-los a recuperar sua condição de ser humano capaz de contribuir com a construção social. As soluções de fundo passam mais por impedir a aparição de focos de delinquência e, quando existem, desmontar aquilo que o sustenta e reproduz.

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