Programar o desenvolvimento local a partir do futuro

A formulação de um programa de desenvolvimento local costuma seguir a clássica seqüência diagnóstico-visão-objetivos-alvos-políticas-atividades, para chegar —não sem certa exaustão—a um plano de ação. É um processo que nem sempre condiz com o tempo e a energia que ele requer. Será que existem formas mais eficazes de programar o desenvolvimento local? Por exemplo, é possível desenvolver uma visão, um rumo, a partir de “fatos concretos do futuro”? Podemos começar, e não terminar, com um plano de ação que refleta um futuro “tangível”? Como seria esse processo? Estariamos à beira de uma quebra paradigmática?

Quase sempre, o processo de formulação de propostas ligadas ao desenvolvimento local começa pelo reconhecimento dos principais aspectos da realidade, entre outros, quais são os agentes sociais, como é a dotação de fatores produtivos, quais os ativos (ou passivos) institucionais existentes, qual a história recente da localidade, qual o seu funcionamento político e econômico, e quais as conexões com o contexto nacional e externo. A partir dessa base de conhecimentos se faz um diagnóstico da situação dessa localidade ou região, detalhando as conseqüências sociais, econômicas e ambientais do funcionamento local, se estabelecem objetivos, estratégias, políticas e programas, e se chega (quando se chega!) a formular –não sem certa exaustão- um plano de ação. É um processo intenso, às vezes criativo e outras vezes cheio de lugares comuns, no qual o tempo e a energia empenhados, se avaliados em relação aos resultados capazes de influir no curso dos acontecimentos, nem sempre valem o esforço.

Durante minha recente visita a Chiloé1, e sem que fosse planejado, surgiu uma nova forma de encarar uma iniciativa de desenvolvimento local: apresentou-se, de começo, um plano de ação preliminar, e em torno a essa proposta improvisada se desenvolveu uma conversa muito interessante e enriquecedora. Em lugar de se partir de uma sorte de ponto zero, como se não existisse conhecimento prévio, preferências e ainda sugestões quanto ao futuro desejado, os assistentes contribuíram suas idéias e preferências para a criação de um rascunho de plano de ação. Então, aconteceu algo surpreendente: os participantes se conectaram, imediatamente, com uma visão de futuro sobre seus territórios e suas comunidades; a partir daí surgiram melhores idéias, precisões e retificações quanto às propostas apresentadas, fato que resultou no enriquecimento dos fundamentos e conteúdos. Cada uma das sessões deixou perguntas e temas em aberto que incentivam a continuar pensando… e propondo. Eles são insumos muito valiosos que a equipe promotora da iniciativa de desenvolvimento local e os grupos especializados a serem constituídos vão saber elaborar e devolver, já processados como projetos capazes de sustentar decisões.

Eu achei que o original e innovador do encontro foi o fato de que se recolhesse, de começo, o conhecimento e os anseios que fluíam das diversas intervenções iniciais, e que estes fossem organizados como ações possíveis e viáveis para a construção de um futuro cujos elementos dispersos já estavam amadurecendo no interior de cada participante. O convite não levou os presentes para o clássico processo, às vezes longo, às vezes árido, de formularem uma proposta de desenvolvimento local a partir do passado, chegando ao presente e, por último, abordando o futuro de leve; antes acabou fazendo com que eles se colocassem numa opção de futuro “tangível” e que, a partir dela, pudessem revisar o presente (condições, potencialidades, limitações, etc), penetrar no passado —quando for necessário— para entender os diferentes processos, e ajustar conseqüentemente o rumo, cujos primeiros passos eram o plano de ação que melhorava a cada intervenção. A partir de uma modesta e muito preliminar proposta de futuro, que ulteriormente foi ajustada e fortalecida assim que os possíveis riscos e implicações foram avaliados, os participantes puderam expor seus interesses e seu sentir, mas com foco nas propostas de ação.

Esta série de encontros com diversos setores locais foi realizada com base em um excelente trabalho prévio efetuado pelo grupo promotor, que soube harmonizar as reflexões sobre o rumo desejado para o desenvolvimento do território (expressão do conjunto social) com os anseios intensos e genuínos, mesmo que pouco evidenciados, de desenvolvimento individual.

Um ingrediente-chave é o fato de que foi possível combinar a atitude de escutar plenamente cada participante com a habilidade de estruturar e verter as sugestões em programas operacionais ajustados às circunstâncias do contexto local e nacional.

Este enfoque, mais bem trabalhado e desenvolvido, poderia conduzir a uma quebra paradigmática quanto às formas e à lógica de programação do desenvolvimento local. Em lugar de seguir a clássica seqüência visão-objetivos-alvos-políticas-atividades-etc, a conversa poderia começar com o delineamento de um plano de ação preliminar, com base na experiência, no conhecimento, nas visões implícitas que alguns trazem consigo, mas que não verbalizam. Isso permite preservar a direção do rumo como elemento estruturador do desenvolvimento local, só que superando o estádio declarativo, ao oferecer, desde o começo, elementos concretos que permitem à população reconhecer que o plano de ação preliminar é, de fato, o início de uma trajetória. É preciso, aliás, atrever-se a passar por cima das resistências e convenções para inovar “a céu aberto” (se conhece o ponto de partida da mudança de direção, mas não os portos que serão atingidos durante a busca).

O novo enfoque também permite acrescentar um ingrediente pouco ortodoxo, quase sempre presente, apesar dos receios que suscita: uma certa intuição criadora de realidade. Com a sua ajuda, o exercício de desenvolver uma visão, um rumo, parte da consideração de “fatos concretos do futuro”, flagrante contradição para outras ópticas e lógicas.
Notas: 1) Iniciativa Chiloé Territorio en Movimiento, convite de Guabún e Avina para participar de reuniões com diversos representantes da comunidade local, julho de 2008.

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