Paraí­sos fiscais: delitos e suas ví­timas

Os chamados paraísos fiscais são paraísos tão somente para organizações e pessoas que operam fora da lei, utilizados para lavar dinheiro cuja origem não querem declarar, evadir impostos e evitar serem identificados e controlados. Podem ser empresas ou indivíduos que delinquem economicamente, assim como traficantes de drogas, armas ou pessoas, organizações ilegais de qualquer tipo e periculosidade. Paraíso fiscal é uma expressão enganosa e leviana que esconde delitos, delinquentes, cúmplices e vítimas. Conviria deixar de chamá-los paraísos fiscais para desmascará-los como paraísos para delinquentes e evasores, que é, em verdade, o que são.Se a existência desses paraísos para delinquentes e evasores não causasse vítimas, seria um tanto distinta a avaliação que faríamos deles, porque alguém poderia se enganar e pensar que são apenas um “mecanismo”, um “instrumento” (note-se a neutralidade dessas palavras) que alguns habilidosos utilizam para maximizar seus ganhos e pô-los fora do alcance da insegurança jurídica e de toda autoridade fiscal. A noção de um paraíso fiscal evoca que há alguns atores mais prontos do que outros para dotarem-se de uma estratégia que lhes permite minimizar sua carga impositiva, possibilitando-lhes uma maior acumulação de capital. Percebidos dessa forma, não suscitam o horror pelo que provocam.

O que estão fazendo os que se utilizam dos paraísos para delinquentes e evasores é, em alguns casos, viabilizar atividades clandestinas e, em outros, extrair mais ganhos do que têm direito a obter evadindo responsabilidades fiscais em lugar de assumi-las como o resto dos contribuintes. Com isso, escamoteiam ilegitimamente recursos que poderiam ter sido destinados a prover infra-estrutura social e produtiva nos países dos quais extraem essa margem de lucro extraordinária. Ambos os tipos de atores produzem uma infinidade de vítimas.

Tanto os que estabelecem como os que utilizam paraísos para delinquentes e evasores são responsáveis por infringir severo dano e padecimento a milhões de famílias. Umas são agredidas de forma direta por organizações delitivas; outras são privadas de serviços sociais (educação, saúde, seguridade social) ou sofrem, como produtores, uma concorrência desleal pelos que descarregam sua responsabilidade fiscal e roubam os recursos necessários para estabelecer uma melhor infra-estrutura de comunicação, irrigação, transporte, portos.

Impacto dos “paraísos” [[A informação estatística desta seção e as referências à posição do Parlamento Europeu das seguintes seleções fazem parte do trabalho de Andreu Missé, La Eurocámara exige una acción más enérgica contra los paraísos fiscales, publicado no El País, da Espanha, em 5 de abril de 2010.]]

O impacto dos paraísos para delinquentes e evasores sobre nossos países do Hemisfério Sul foi e é demolidor. Um informe aprovado pelo Parlamento Europeu destaca que os fluxos ilícitos procedentes dos países em desenvolvimento oscilam entre 641 e 941 bilhões de dólares anuais, dez vezes mais que toda a ajuda oficial ao desenvolvimento! Isto é, ao mesmo tempo em que com muito esforço e não pouca condicionalidade se gerou a parca solidariedade de países doadores, nossos países sangraram dez vezes mais por um assalto massivo que contribuiu para gerar pobreza e atraso econômico.

A riqueza radicada nos paraísos para delinquentes e evasores ronda os 13,5 bilhões de dólares (10 bilhões de euros), enquanto que o déficit financeiro gerado pela crise nos países em desenvolvimento é de 315 bilhões de euros em 2010.

Um estudo elaborado pela Global Financial Integrity, também citado por Andreu Missé, conclui que na África os fluxos ilícitos entre 1970 e 2008 somaram 854 bilhões de dólares (e seguem crescendo a um ritmo anual de 11%!). O estudo destaca que esta cifra permitiria eliminar toda a dívida externa na África e dedicar os 600 bilhões restantes para aliviar a pobreza e promover o desenvolvimento.

A fraude fiscal via paraísos para delinquentes e evasores afeta também os países centrais em termos de insegurança e de não poder regular os tremendos golpes desestabilizadores das ingentes massas de recursos financeiros fora do controle de seus reguladores, se bem seu impacto econômico seja relativamente menor pela envergadura dessas economias. As perdas para os Estados Unidos alcançaram a nada desprezível cifra de 100 bilhões de dólares; para a Alemanha, 25 bilhões, e para a França, 20 bilhões.

Hipocrisia e cumplicidade

A pergunta óbvia é por que se permitem e protegem esses paraísos para delinquentes e evasores. Se bem existam várias e diversas respostas, na base de todas elas aparecem os interesses e a hipocrisia de certos grandes grupos econômicos e países que se beneficiam com sua existência. De outro modo, não se poderia explicar sua permanência, funcionamento e a proteção que facilitam as organizações delitivas. É impossível crer que com a sofisticação dos serviços de inteligência contemporâneos não se possa acessar a informação sobre os que operam nesses paraísos, como o fazem e quem vitimizam. Sem essa cumplicidade, os paraísos para delinquentes e evasores não poderiam existir nem reproduzir seu poder destrutivo.

Toda grande empresa transnacional procura maximizar seus ganhos, o que, em princípio, é legítimo; só que algumas o fazem respeitando leis e códigos de justiça e ética, enquanto que outras aproveitam sua presença em diversas jurisdições territoriais (cada uma com seu próprio regime fiscal e regulações) para violar leis e lucrar à custa de vítimas indefesas que sofrem as consequências de sua ação delitiva. Uma das formas para materializar essa ilegítima extração de ganhos extraordinários é por meio de vendas e compras entre subsidiárias de um mesmo grupo econômico. Para evadir o pagamento de impostos na jurisdição em que opera, uma subsidiária vende sua produção exportável a preço menor que o de mercado a outra empresa do mesmo grupo econômico (ou vinculada com esse grupo) localizada em outra jurisdição mais relaxada em matéria fiscal e regulatória; por exemplo, um paraíso para delinquentes e evasores. O comprador baseado nesse paraíso logo revende o adquirido ao preço, agora sim, de mercado, retendo para seu grupo econômico o ganho extraordinário originado na evasão fiscal incorrida.

A cumplicidade dos que gerem os paraísos para delinquentes e evasores não termina aí, dado que nenhum grupo acumula capitais em um paraíso para não utilizá-los. Os paraísos também facilitam a lavagem de dinheiro mal obtido para tornar a derramá-lo no fluxo econômico internacional. Essa cumplicidade se estende aos países onde estão baseadas as sedes dos grupos econômicos que utilizam e não eliminam os paraísos para delinquentes e evasores, já que terminam se beneficiando da apropriação que essas grandes corporações fazem dos impostos que não pagam ao resto do mundo.

A existência de paraísos para delinquentes e evasores tem sido facilitada pelo enorme desenvolvimento tecnológico das comunicações. Hoje, a triangulação entre jurisdições leva segundos e a sofisticação disponível para encobrir transações ilegais é tal que se dificulta ao extremo seguir a rota que os delinquentes e evasores utilizam; mais ainda se os reguladores e os que têm responsabilidades de combater o delito financeiro atuam com venalidade ou negligência.

Existem também outros casos de pessoas ou empresas que residem em jurisdições onde prima a insegurança jurídica e temem expropriações súbitas e arbitrárias de seus ativos. Essas pessoas elegem outros destinos fora de seu próprio país para resguardar suas poupanças. Em princípio, isso não justifica a evasão fiscal já que em muitos casos a segurança jurídica se logra adquirindo ativos fora do próprio país sem esconder seu patrimônio e, portanto, sem evadir o pagamento de tributos ao país e à sociedade em que logrou gerar seu benefício. Não obstante, existem exceções, como quando em certas jurisdições a insegurança jurídica é extrema e vem associada à proibição de exportar poupanças: nesses casos, pequenos e médios contribuintes que procuram desvincular-se do risco jurisdicional se vêem obrigados a evadir também sua responsabilidade fiscal com o país de origem.

A referência a cúmplices dos paraísos para delinquentes e evasores inclui também os contadores e advogados que estruturam a forma de implementar a evasão, o banco transgressor que lucra ocultando e facilitando a lavagem das transações financeiras e, muito especialmente, os governos complacentes ou tolerantes influenciados pelos interesses de que se servem os paraísos para abusar de vítimas desprotegidas cujos rostos podem ou não conhecer.

Por último, certo grau de cumplicidade recai sobre a opinião pública e cada um de nós quando, por ignorância ou despreocupação, toleramos que pessoas e empresas que conhecemos utilizem esses paraísos para delinquentes e evasores sem receber sequer uma sanção moral ou social.

Urge abater os paraísos para delinquentes e evasores

Para erradicar os paraísos para delinquentes e evasores, requer-se uma ação concertada em nível internacional. No G-20 e na OCDE se tem conseguido estabelecer acordos para intercambiar informação fiscal; um bom primeiro passo, mas que resulta claramente insuficiente. Destaca Andreu Missé que o Parlamento Europeu tem exigido da OCDE, do G-20 e da própria União Europeia “que adotem critérios mais rigorosos para identificar os paraísos fiscais”.

Mais ainda, o Parlamento Europeu denunciou a hipócrita conduta de países ocidentais que permitem que grandes empresas lucrem abusivamente à custa dos países do Sul evadindo suas obrigações tributárias. Sustenta que os paraísos fiscais “podem constituir um obstáculo insuperável para o desenvolvimento econômico dos países pobres, usurpando a soberania de outros países e criando incentivos para a delinquência econômica”. O informe do Parlamento Europeu destaca que a metade dos fluxos financeiros ilícitos fora dos países em desenvolvimento está relacionada com a manipulação dos preços comerciais. Reitera, portanto, seu chamado em favor de um novo acordo financeiro global vinculante que obrigue os grupos multinacionais, incluindo suas filiais, a revelar automaticamente os lucros obtidos e os impostos abonados em cada país. Ademais, propõe que se proíba qualquer sociedade, banco ou instituição registrados em um paraíso fiscal de beneficiar-se de fundos públicos.

Está claro que o lobby do delito organizado e de certos grandes grupos econômicos fará todo o possível para continuar contando com paraísos para delinquentes e evasores e que nessa luta contarão com a cumplicidade de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se beneficiam com sua existência. Para enfrentá-los com alguma probabilidade de êxito, os Estados, as pessoas e as empresas vítimas desses paraísos necessitarão tomar plena consciência do dano a que são submetidos e coligar-se com aqueles nos países do norte e do sul que lutam de braços dados por um desenvolvimento sustentável. Cada voz conta: pode ajudar a mobilizar a opinião pública para exigir uma ação internacional muito mais firme e efetiva, restando-lhes com esse esforço oxigênio político e valoração social a esses perigosos delinquentes e suas bases “paradisíacas”.

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