Novas políticas a serviço do bem-estar dos povos e o cuidado ambiental

Não foram poucas as tentativas de estabelecer economias a serviço do bem-estar dos povos e o cuidado ambiental. Não obstante, de uma ou outra forma, essas economias foram arruinadas por reações neoliberais que limaram seus frágeis sustentos. Por que não lograram se preservar e fortalecer? Como superar esses ensaios embrionários e dar marcha a dinâmicas sustentáveis de base popular e cuidado ambiental?

Comecemos analisando a reação neoliberal que predomina em muitos países; seus efeitos, implicações, como se sustenta e os castigos e debilidades que apresenta. Daí iremos extraindo algumas reformas encaradas no passado ao sair de fases neoliberais, confiando que essa experiência possa servir para encarar transformações mais profundas e sustentáveis.

A reação neoliberal

Uma vez consagrado seu controle pelo Estado, a reação neoliberal se apressa a desmontar aquelas instituições que se tivessem estabelecido para defender a extensão de direitos populares. Apontam para melhorar a taxa de lucro do poder econômico aduzindo que é o principal motor do crescimento e que ao se dinamizar derramará logo sobre o resto do conjunto social. Se minimizam as regulações aos movimentos do capital; não se alteram os mecanismos existentes de apropriação de valor; se diminui o Estado reduzindo impostos ao poder econômico e em simultâneo os gastos sociais; se flexibiliza o emprego e baixa o salário real de trabalhadores; perde prioridade o cuidado do meio ambiente; avança a liberação dos mercados que submete as economias locais a uma desigual competência internacional; sobe o endividamento soberano em níveis alarmantes e com isso a carga de interesses e a consequente perda de soberania de decisões nas mãos de credores financeiros. Com as variantes que cada situação impõe, o retrocesso do bem-estar dos povos e o cuidado ambiental ocorre hoje em quase todas as latitudes.

Seus resultados estão à vista: tremenda regressão distributiva, estendido desemprego e subemprego com duro crescimento da pobreza e da indigência; máxima financiarização da economia (se mercantilizam quase todas as dimensões da vida social); multiplicação de negócios e negociatas de poderosos grupos econômicos que, com a evasão tributária que praticam e a fuga de capitais para guaridas fiscais, esterilizam uma vultosa parte do potencial nacional de desenvolvimento e reforçam a explosiva concentração da riqueza; se consagra uma matriz produtiva disfuncional e cadeias desiguais de valor; a desigualdade se expande sem controle deslizando países para uma recorrente instabilidade sistêmica; minorias concentram o poder de decisão, operam manipulando vontades e moldando subjetividades com base na desinformação, enganos, ameaças e perseguições; se silenciam vozes opositoras e se entroniza um pensamento hegemônico apresentado como única e permanente verdade; fica gravemente afetada a representatividade política e a confiança na justiça e nas forças de segurança; se multiplicam as democracias capturadas.

Do desmonte do microeconômico à submissão da produção nacional

As pequenas e médias empresas, e também várias das grandes, se enfrentam com uma gravíssima mudança de situação e, pior ainda, de perspectivas. Encaram uma demanda interna deprimida resultado da redistribuição regressiva de renda e o impulso concentrador; as importações aumentam mais e mais pelo desmonte da proteção da indústria local (proteção que todas as economias centrais impuseram para defender em seu momento suas nascentes indústrias); as autoridades monetárias impõem altas taxas de lucro aduzindo que são necessárias para baixar a inflação (pouco logram a curto prazo, a médio prazo avançam maliciosamente destruindo demanda sem alentar a produção local, com um agregado nem sempre explicitado: a tremenda fome de especuladores e entidades financeiras que obtêm lucros a taxas extraordinárias).As empresas locais já não dispõem de linhas de crédito subsidiadas (estigmatizam os “subsídios” quando, aplicados com efetividade e prudência, podem ajudar a reorientar a marcha econômica para o bem-estar dos povos e o cuidado ambiental); enfrentam, ademais, aumento de custos pelo aumento das tarifas de serviços públicos (premiam os donos desses monopólios expropriando valor dos produtores e consumidores); sofrem uma forte pressão tributária (fazem parte dos chamados “tontos” porque enquanto são carregados de tributos, os grandes, como foi destacado, evadem deslealmente sua responsabilidade tributária e fogem com seu capital para guaridas fiscais). Como cúmulo, enfrentam as ameaças de novos acordos de livre comércio com potências internacionais que levam décadas de vantagens tecnológicas, comerciais e financeiras já consagradas, muito difíceis de enfrentar mais ainda quando elas conservam barreiras protecionistas abertas ou encobertas.

Diante dessa mudança de situação, as empresas locais ajustam suas estruturas para subsistir e o fazem ainda aqueles que são forçados a reconverter e não desejariam fazê-lo. É que os que não se venham a “adaptar” à orientação imposta correriam sérios riscos de desaparecer. Mas fique claro, subsistirão os donos das empresas ainda que não os trabalhadores despedidos nem tão pouco os submetidos ao que se dá em chamar flexibilização laboral que leva consigo a perda de poder aquisitivo dos salários e a piora de condições de trabalho, com sindicatos em retrocesso e alguns dirigentes traindo suas bases ou cooptados pelo poder concentrado.

Opções dirigidas ao bem-estar dos povos e o cuidado ambiental

Importa destacar que antes que se impusesse a reação neoliberal, as economias de base popular não puderam eliminar os sustentos do processo de concentração econômica e de decisão. Tentaram-no em alguma medida; fraca, dizem alguns; foi o possível, dizem outros. Ficaram no meio do caminho, sofrendo o desgaste desestabilizador que sempre exercem os poderes fáticos. Foram esforços reformistas com aspirações transformacionais que aportaram valiosos avanços quanto ao esclarecimento popular e a luta cultural, ainda que não tenham logrado mudar a correlação imperante de forças.

Não deveria resta mérito a estes esforços porque semearam o apetite por novos rumos. Não obstante, para assegurar sustentabilidade às transformações, haverá que desmontar os sustentos do desaforado processo de concentração e reverter a impiedosa desigualdade resultante.

Não são poucos nem insignificantes os desafios a encarar. O essencial se desempenha na esfera política, onde toca enfrentar o desmedido poder que exercem os grupos concentrados com as cumplicidades que logram estabelecer com setores da política, as mídias, a justiça e de certas usinas de pensamento estratégico e do sistema educativo que lhes proveem de cobertura ideológica. Os recursos e a informação que manejam lhes permitem cooptar corruptos e oportunistas, sejam políticos, juízes, jornalistas ou apresentadores populares de programas televisivos. Logram, inclusive, desunir o campo popular, alentando os mais inofensivos e perseguindo as lideranças que eles temem.

A chave-mestra de qualquer transformação orientada a servir ao bem-estar dos povos e o cuidado ambiental é, então, de natureza política (em suas múltiplas dimensões) e inclui o estratégico esforço de unir o campo popular através do esclarecimento dos setores majoritários e de formar organizações que saibam e possam alinhar a diversidade de interesses que coexistem em qualquer sociedade. Isto exige compreender cabalmente o que acontece no território e reconhecer a legitimidade inerente aos distintos interesses. Haverá que trabalhar com um enfoque dinâmico (não estático) porque os interesses evoluem e se transformam com o tempo. Ademais, o poder concentrado não descansa e ajusta permanentemente suas estratégias de submissão e dominação.

Políticas transformadoras de novo cunho

O princípio ordenador das transformações que se propõem já não é maximizar o lucro dos donos do capital, financiarizar a economia inteira e mercantilizar todas as posses, mas melhorar o bem-estar do povo e cuidar do meio ambiente. Considera-se que todo potencial produtivo de um país é quem gera riqueza e renda e esse potencial deve se materializar promovendo que a totalidade dos recursos produtivos possam se mobilizar com justas compensações pelo esforço que realizam. Se fala de um crescimento orgânico alijado dos tremendos desequilíbrios econômicos, sociais e ambientais que levam a recorrentes crises de setor externo, à asfixia do mercado interno, a concentrar as rendas em quem mais evade sua responsabilidade tributária e fogem ao exterior com grande parte dos resultados que obtêm no país. Essas mesmas minorias forçam o desenvolvimento científico e tecnológico para servir seus interesses e condicionam os sistemas educativos para evitar a emergência de pensamento crítico que alimente o temido processo de esclarecimento popular.

Um punhado de grandes multinacionais controla o comércio internacional; enormes grupos financeiros estão em condições de mobilizar em segundos bilhões de dólares, euros ou ienes para se apropriar de oportunidades que emerjam em quase qualquer latitude do mundo; mais ainda, têm a capacidade de “gerar” oportunidades que sirvam a seus interesses, através da manipulação de mercados, sorteio de regulações, desestabilização de governos e imposição de cumplicidades antes mencionadas. Aquelas medidas comerciais que foram e, em alguma medida ainda são, utilizadas por países centrais, são vedadas às economias emergentes ou atrasadas.

Nesse contexto, um aspecto crítico é desmontar os mecanismos de expropriação de valor que existem em nossos países. Se não for feito, cairemos novamente em só políticas redistributivas de rendas sem transformar a estrutura produtiva e o funcionamento econômico prevalecente que foram definidos segundo decisões adotadas por poderosos grupos econômicos em seu próprio benefício. A estrutura assim imposta à matriz produtiva nacional e a forma como operam as principais cadeias de valor e as relações econômicas internacionais fazem deslizar os países não centrais para desigualdades e recorrentes fases de instabilidade sistêmica. Para cortar essa perversa dinâmica haverá que resolver os estrangulamentos setoriais e de setor externo que gera uma lábil matriz produtiva, assim como as desigualdades que se dão no interior das cadeias de valor, questões que o mercado é incapaz de lograr por sua conta.

Não funciona aquilo de gerar condições para que os investidores invistam. O que importa é quem investe e onde investem: medir impactos e consequências; ademais, onde vão os lucros que se acumula e como os que tem internalizado uma cobiça sem fim incidem sobre o poder de decisão cada vez mais concentrado. É que não há outros investidores com outras racionalidades e propósitos? Não mudaria isto fortalecendo médios empreendimentos produtivos de base popular? Sabemos que existe engenharia organizativa para integrar produtivamente trabalhadores e pequenos empreendedores hoje dispersos. Cooperativas de primeiro e segundo (holdings) graus, franquias populares, comercializadoras e supermercados comunitários, agroindústrias locomotoras, diversos tipos de agricultura familiar, empresas recuperadas por seus trabalhadores, consórcios de exportação, entre outras modalidades organizativas, estão disponíveis para dar marcha a novas gerações de produtores orientados a cuidar do meio ambiente ao mesmo tempo que servem ao bem-estar de suas comunidades. O desafio passa por estabelecer um efetivo e compreensivo sistema de apoio a esses emergentes atores que poderia se estabelecer em torno a uma formação de desenvolvedoras e fideicomissos especializados em atividades econômicas de base popular.

Do que se trata é desmontar os mecanismos que utiliza o poder concentrado para expropriar valor que seus membros não produzem incidindo sobre o processo de geração, retenção e reinvestimento do valor que os povos produzem. Isso faz os que manejam e destinam a poupança nacional, questões não simples que incluem as estruturas tributárias e de gasto público, as políticas promocionais, a estrita regulação do endividamento soberano, o manejo da política monetária e todas as demais políticas públicas saúde, educação, ciência e tecnologia, saneamento e cuidado ambiental, segurança cidadã, moradia e organização territorial, entre tantas outras) que incidem sobre o funcionamento social.

Nenhuma dessas políticas, medidas e projetos podem definir por si mesmas os valores e orientações que guiam seu rumo. Podem deter uma boa margem de independência na gestão mas o que pesa e define sua ação é aquele princípio ordenador acima destacado: nos organizamos para que poderosos e cúmplices possam maximizar seu lucro apostando que logo esse lucro concentrado derramará sobre o bem-estar da sociedade toda ou, em troca, avançamos transformando estruturas e formas de funcionar para que o potencial de desenvolvimento que se aninha em nossos povos e não em minoria alguma sirva para o cuidar do planeta e melhorar permanentemente o bem-estar de todos.

 

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