Negociações salariais para abater a desigualdade e sustentar o crescimento

Se todo o peso do ajuste necessário para abater a desigualdade recaísse sobre uma negociação salarial, a dinâmica de desenvolvimento de um país poderia ser afetada. Mas também há outras variáveis que, além dos salários, exercem influência e devem ser ajustadas como parte de uma ação abrangente destinada a reduzir a desigualdade e sustentar o crescimento nacional. Quais são essas variáveis e quais os limites e possibilidades das negociações salariais?

Se todo o peso do ajuste necessário para abater a desigualdade recaísse sobre uma negociação salarial, a dinâmica de desenvolvimento de um país poderia ser afetada. Ao mesmo tempo, uma negociação salarial que compense adequadamente aqueles que participam do processo produtivo é essencial e legítima. O que estamos dizendo é que não é possível carregar sobre uma única variável –neste caso, um reajuste salarial- todo o esforço necessário para abater, de maneira significativa, a desigualdade e a pobreza.

Mais adiante analisaremos os elementos próprios de uma negociação salarial. Mas antes disso vale a pena mencionar as outras variáveis que, além dos salários, também exercem influência e devem ser ajustadas para que seja possível materializar uma redução da desigualdade e da pobreza; em outras palavras, colocar as negociações salariais no contexto de uma ação abrangente a fim de abater a desigualdade. Ao fazer isso, enriquecemos o espaço natural e possível de uma negociação salarial com uma visão sistêmica, aproximando as partes para que fechem acordos que contribuam a reduzir a desigualdade e sustentar o crescimento do país.

(i) Políticas macroeconômicas para abater a desigualdade e sustentar o crescimento

Quase todas as políticas públicas têm incidência direta ou indireta tanto sobre a desigualdade quanto sobre o crescimento. É por isso que todas elas deveriam ser instrumentos para abater a desigualdade e promover o crescimento. Para exemplificar, vamos destacar duas das mais relevantes: a política fiscal e a de despesa pública.

A regressividade dos sistemas tributários na América Latina é inaudita. Para exprimi-lo em uma frase: os pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos do que os ricos. São várias as razões que explicam essa sem-razão . Para nos aproximar de um desenvolvimento econômica e socialmente sustentável, a política fiscal deve eliminar a regressividade.

A despesa pública, por sua parte, costuma ser a principal fonte de financiamento dos sistemas de ensino, de saúde e de segurança, da infra-estrutura viária e energética, e de muitos outros setores e atividades que sustentam o crescimento e que formam parte da renda de natureza não-salarial dos segmentos que constituem a base da pirâmide social. Na medida em que a despesa pública destinada a atender às necessidades sociais e produtivas desses segmentos seja devidamente priorizada, se estará contribuindo para abater a desigualdade de maneira sustentável.

(ii) Iniciativas mesoeconômicas para abater a desigualdade e sustentar o crescimento

As empresas fazem parte de tecidos ou redes produtivas que formam cadeias de valor e clusters constituídos por empresas similares ou complementares. Esse é o espaço da mesoeconomia. Neste espaço, todas as unidades produtivas que participam das redes são protagonistas, mas as empresas líderes ocupam um papel especial. São elas que encaminham as outras e que exercem influência em seu comportamento. Essas empresas líderes têm a responsabilidade mesoeconômica de contribuir, a partir de seu próprio âmbito de atuação, para abater a desigualdade e sustentar o crescimento. Não só criando novos postos de trabalho para reduzir o desemprego e melhorando a renda de seus funcionários, mas também adotando tecnologias e formas de estruturar seus negócios e de se relacionar com fornecedores, distribuidores e clientes que favoreçam, em tudo o que for possível, os segmentos que constituem a base da pirâmide. Cada decisão empresarial, cada novo investimento, terá efeitos primários e secundários. Os primários são aqueles que incidem sobre o funcionamento e os resultados da própria empresa; os secundários são os efeitos causados no resto dos agentes de sua cadeia de valor e da comunidade na qual ela opera. Não é freqüente que esses efeitos sejam explicitamente considerados e incluídos na matriz de decisões de uma empresa; isto esteriliza quaisquer potenciais efeitos benéficos ou, o que é pior ainda, pode causar impactos negativos que poderiam ser evitados sem afetar, ou afetando apenas de maneira marginal, os resultados. O setor privado não fica à margem do esforço nacional por abater a desigualdade e sustentar o crescimento; ele cumpre um papel importantíssimo.

(iii) Programas de apoio aos micro e pequenos empreendimentos produtivos

Boa parte da população que conforma a base da pirâmide social assegura sua sobrevivência por meio do trabalho independente ou do trabalho assalariado, que geralmente é desempenhado de maneira informal em micro ou pequenos empreendimentos produtivos. Desse modo, os programas de apoio aos micro e pequenos produtores constituem um componente essencial do esforço por abater a desigualdade e a pobreza. Isso inclui programas de microcrédito e de crédito para MPEs, além de um amplo leque de ações voltadas à assistência tecnológica e à gestão comercial. A Opinión Sur tem tratado o tema extensamente, motivo pelo qual, nas linhas abaixo, salientaremos apenas dois aspectos fundamentais da questão.

O primeiro deles refere-se à excelência e ao salto de patamar que deveriam caracterizar os programas de apoio. A brecha relativa à renda fica ainda maior se lhe acrescentarmos a brecha referente a conhecimentos, contatos e informações que afeta todas as camadas da base da pirâmide social. Necessitamos e podemos fechar essa brecha. Na atualidade, a economia depende do conhecimento, e não é válido agravar a já precária situação dos micro e pequenos empreendedores privando-os do acesso à moderna engenharia de negócios disponível no mercado, fraudando-os de informações sobre as oportunidades comerciais existentes e o modo de aproveitá-las, negando-lhes assistência para a apropriada gestão de seus empreendimentos. Do mesmo modo, não podemos ficar no estágio das demonstrações, dos projetos-piloto. Esses esforços são e continuarão sendo válidos como campos de ensaio para novos métodos e enfoques de trabalho, mas hoje o desafio consiste em assistir às grandes maiorias (e não apenas aos pequenos bolsões de pobreza) mediante programas de grande alcance e significação.

O segundo aspecto refere-se ao grande esforço que deve ser feito para legalizar o trabalho informal, que abunda nos micro e pequenos empreendimentos. Nestes casos, as condições objetivas dessas pequenas unidades fazem com que a legalização dos trabalhadores sem carteira assinada seja muito difícil e, às vezes, inviável. Se elas tivessem que cumprir com todos os encargos sociais e as exigências fiscais e regulamentares impostas pelas normas vigentes, a viabilidade dos empreendimentos que operam em situação de sobrevivência ficaria em perigo. Nas condições atuais, o fato de perseguir apenas os micro e pequenos empreendedores que não regularizam seus trabalhadores é ineficaz ou contraproducente. Em lugar disso, é preciso criar um regime especial para as empresas de micro e pequeño porte (como o implantado em vários países), que de maneira gradual, mas firme, complete um processo de transição para a regularização da força de trabalho sem carteira assinada.

(iv) Limites e possibilidades das negociações salariais

Com a explicação anterior, fica claro que encarar as negociações salariais num contexto onde predomina o “salve-se quem puder e como puder” é bem diferente do que fazê-lo num ambiente onde as negociações se desenvolvem paralelamente à implementação de uma série de ações voltadas a abater a desigualdade. Ao encarar uma reforma fiscal séria e dar a devida prioridade às verbas destinadas à base da pirâmide social, se melhoraria o salário líquido dos trabalhadores (que pagariam menos impostos) e se acrescentaria a renda não-salarial (cobrendo as necessidades dos segmentos populares mediante a disponibilização de melhores serviços em matéria de ensino, saúde, energia, etc).

O ambiente de negociação seria melhor ainda se as empresas líderes das cadeias produtivas encabeçassem um esforço concebido para exercerem plenamente sua responsabilidade mesoeconômica. A partir desse esforço surgiriam novos empregos, e talvez melhor remunerados, em toda a extensão da cadeia produtiva, além de um valor agregado não-financeiro consistente em disponibilizar aos pequenos empreendimentos modernos conhecimentos, acesso aos mercados, informação comercial e assistência durante o andamento do negócio.

Além do mais, os programas de apoio aos micro e pequenos empreendimentos são essenciais pelo fato de que, se bem que as negociações salariais estão focadas nos trabalhadores com carteira assinada, alguns destes trabalhadores também realizam, diretamente ou através de familiares, atividades informais com as quais completam sua renda principal.

Em todo caso, é claro que tanto os sindicatos quanto as associações empresariais vão encarar as negociações salariais de maneira diferente, seja que estas façam parte ou não de um conjunto abrangente de ações orientadas a movimentar a base da pirâmide social.

No que diz respeito às negociações salariais em si mesmas, é preciso considerar vários aspectos que incidirão sobre elas; entre outros, os seguintes:

Avaliar de que modo são repartidos os resultados entre os trabalhadores, os quadros executivos e os donos do capital. Se bem que, segundo o critério básico, os aumentos salariais deven acompanhar os incrementos na produtividade, também vale considerar a estrutura distributiva atual e como evoluíram essas proporções ao longo do tempo, a fim de não consagrar eventuais injustiças distributivas decorrentes de épocas anteriores e também não violentar os limites de viabilidade econômica das unidades produtivas.
Analisar que percentagem das receitas de capital é retirada da empresa e que percentagem é reinvestida. Os trabalhadores poderiam, eventualmente, pospor uma parte de suas aspirações atuais em face de uma expectativa bem fundada de melhores resultados futuros, se a empresa ou o setor estivessem capitalizando mediante um firme reinvestimento dos resultados. Nesses casos, a negociação deveria incluir cláusulas que compreendam reajustes salariais ligados à consecução de melhores resultados futuros para cada empreendimento. Entretanto, a postura dos sindicatos seria bem diferente se grande parte dos resultados saísse da empresa via dividendos ou mediante outros métodos (tais como o subfaturamento nas filiais de um mesmo grupo econômico). Nesses casos, a luta salarial recairia inteiramente sobre a atualidade corporativa, já que os trabalhadores aspirariam a receber a maior cota-parte possível na distribuição de resultados.
Existe uma variedade de métodos (alguns deles muito criativos) para alinhar os interesses de todas as partes que sustentam uma empresa. Sem criatividade, os espaços propícios para os acordos construtivos se estreitam e cresce o risco de se cair em confrontos que acabem afetando todos os agentes. A cobiça de alguns, a frustração de outros, a ignorância e a má-fé de muitos, só podem ser combatidas con transparência, informação clara, uma boa argumentação, e sólida credibilidade das partes. A confiança mútua, esse bem intangível de enorme valor, muitas vezes ignorado e outras vezes afetado por comportamentos irresponsáveis, é, na verdade, o maior facilitador para uma negociação bem-sucedida. A corrupção, a necedade, a mesquinhez, a ignorância ou a indiferença pelas circunstâncias dos outros, podem descarrilar qualquer negociação. Ao contrário, uma boa dose de pragmatismo e criatividade, e um verdadeiro esforço das partes por entender os limites do possível, são condição necessária para continuar a avançar como parceiros no esforço de criação de riqueza.

Em um mundo onde o egoísmo e o costume de tirar vantagem dos outros não escasseiam, pode parecer estranho que encerre este artigo lembrando que a economia, além dos parâmetros históricos e tecnológicos que a condicionam, é essencialmente constituída por relações entre pessoas e grupos. Essas relações são guiadas por interesses, mas também por valores. Daí que exista um espaço de trabalho essencial não só para aprender a alinhar construtivamente a diversidade de interesses que lutam por prevalecerem, mas também para que nós os trabalhadores, executivos ou donos de ativos reflexionemos, perante nossos valores, sobre a significação de nossos atos, e as conseqüências e responsabilidades que deles derivam.

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