A sociedade fragmentada

Pretendemos demonstrar um complexo fenômeno que provoca a “fragmentação” da maioria em grupos sociais que são tratados e se tratam entre si como “minorias discriminadas”, que mede ou dificulta a “constituição” de uma “maioria” e, portanto, produz o efeito político de que essas maiorias tenham uma impossibilidade absoluta de adquirir a hegemonia política e muito escassa possibilidade de provocar políticas sociais.  

A fragmentação da sociedade é uma estratégia do poder dominante e a sociedade fragmentada é a situação de grande parte da população, que não só está alijada do poder, mas afetada em sua própria capacidade de se constituir em maioria com aspirações a alcançar a hegemonia política.

A fragmentação da sociedade, como estratégia de poder, busca construir ou fabricar grupos sociais isolados, “minorias” no sentido da definição dada precedentemente, e busca gerar práticas de “guerra” entre essas minorias, logrando um controle social horizontal, que envolve esses mesmos grupos sociais em uma relação vítima-vitimador, dual e cambiante. A sociedade fragmentada é a condição de nossos povos, tratados em contradições superficiais, desorientados com respeito a objetivos comuns, impossibilitados de assumir lutas coletivas. A fragmentação implica estratégias de desorientação. A sociedade fragmentada implica uma maioria – e às vezes um povo inteiro – que perdeu o rumo de sua própria causa nacional.

1. A sociedade feita em pedaços

A fragmentação, repetimos, é uma estratégia do poder dominante. Esta estratégia se baseia na entrada em marcha de certos mecanismos que constituem uma verdadeira política de “desorientação social” que age, fundamentalmente, em três níveis: a) a atomização da sociedade em grupos com escassa capacidade de poder; b) a orientação desses grupos em direção a fins exclusivos e parciais, que não suscitam adesão; c) a anulação de sua capacidade negociadora para celebrar “pactos”. Geralmente os diversos mecanismos dirigidos para algum desses níveis em particular.

Uma estratégia de fragmentação necessita romper o horizonte da totalidade. Este horizonte da totalidade constitui, por uma parte, o espaço em que se projetam os objetivos transgrupais, isto é, que possam ser compartilhados por outros grupos; por outra parte, constitui o espaço em que os pactos políticos são possíveis, isto é, o âmbito em que os sujeitos do consenso se reconhecem a si mesmos como potenciais aliados (e não como inimigos) e onde o consenso se torna efetivo pelo acordo.

O primeiro mecanismo é o da “morte das ideologias”. Mediante essa prédica se rompe o horizonte da totalidade, já que a ideologia implica uma análise da realidade que aspira a nos brindar uma compreensão da sociedade e da prática política, igualmente abarcadora. Não interessa, no fundo, a demonstração de que não é certo que as ideologias tenham morrido, ou explicar que, pelo contrário, a prédica mesma consiste em um exemplo de um dos triunfos mais acachapante de uma ideologia definida. Ao poder dominante não interessa que se grave na consciência dos cidadãos a ideia da morte das ideologias, porque essa ideia não é um antídoto suficiente para adquirir uma ideologia remoçada. O vírus que contém tal prédica busca gerar uma projeção de ações os grupos sociais onde o espaço total não existe, está “fragmentado”. Esta fragmentação do espaço em que se projetam os objetivos grupais favorece modos de incomunicação social, dado que a possibilidade que os objetivos específicos do grupo se convertam em objetivos transgrupais se vê afetada em sua própria base. A prédica desideologizada é um mecanismo para anular a capacidade de assumir utopias sociais e para eliminar a ideia de espaço total em que elas estão imersas.

Existe outro mecanismo para destruir a capacidade utópica dos grupos sociais. O que temos descrito busca anular o espaço da totalidade. O que agora analisaremos busca ocupar todo esse espaço, eliminá-lo por saturação. A esse mecanismo denominamos “milenarismo”.

O milenarismo se apresenta como uma versão da história e do desenvolvimento político de nossas sociedades segundo o qual houve uma antiga época de ouro, onde nossos países gozavam de uma boa situação social e econômica, o progresso era constante, as classes políticas cultas e responsáveis, a moeda forte e, em geral, se viveria uma época de prosperidade e bem-estar. Cada país tem sua própria versão milenarista, segundo suas próprias condições históricas e presentes.

É obvio que se trata de uma visão simplista e falsa, mas a estratégia milenarista consiste, precisamente, em instalar na consciência social uma ideia de perda, a sensação de que antes estávamos bem e depois ficamos mal. Tal simplificação da análise histórica tem entre seus objetivos facilitar a fratura que a ruptura da totalidade requer: “esqueçamos os sofrimentos do passado, abandonemos a gênese de nosso presente, acabemos com as velhas desavenças que paralisaram nossos povos! Só importa recuperar o passado de glória, a abundância dos velhos tempos!” Não escutamos frases desse tipo em muitos discursos oficiais de nossos diversos países? Essas frases não são um lugar comum da análise política que muitos de nossos governantes realizam?

Desse modo, se produz um novo fator de desorientação: o presente se define como algo novo, como uma nova fundação, que não tem que saldar nenhuma dívida com o passado; mas, por sua vez, se apresenta como a restauração de um tempo idílico. A estratégia milenar busca se apropriar da história e com isso busca se apropriar da consciência histórica, gerando um esvaziamento da consciência coletiva.

Agora bem, se se perde a consciência histórica, perde-se também a possibilidade de definir o futuro, já que o presente se converte no único espaço livre. E isso é precisamente o que busca a versão milenarista. O futuro já está definido e legitimado porque é a restauração da idade de ouro.

O mecanismo de desorientação é simples: a) elege-se um determinado momento histórico; b) define-se de um modo simples, destacando todas as suas bondades; c) em seguida tudo o que ocorreu desde esse momento até o presente é uma perda, um retrocesso, a destruição da idade de ouro (assim se apresenta a história nacional, como uma história de decadência); d) portanto, é “minorias” no sentido da definição dada precedentemente, e busca gerar práticas de “guerra” entre essas minorias, alcançando um controle social horizontal, que envolve a esses mesmos grupos sociais em uma relação vítima-vitimador, dual e cambiante. A sociedade fragmentada é a condição de nossos povos, tratados em contradições superficiais, desorientados com respeito a objetivos comuns, impossibilitados de assumir lutas coletivas. A fragmentação implica estratégias de desorientação. A sociedade fragmentada implica uma maioria – e, às vezes, um povo inteiro – que perdeu o rumo de sua própria causa nacional. Sob essa perspectiva, afirmar que as verdadeiras maiorias discriminadas de nossos povos latino-americanos são as maiorias sociais, é uma afirmação novamente rica para a análise teórica e muito mais rica ainda para a prática política.

2. Democracia e fragmentação

Parece que a descrição da sociedade fragmentada pode se aproximar dos termos de uma sociedade democrática. Nela também existe uma infinidade de grupos sociais e a vida democrática mesma favorece a criação e a manutenção de grupos com interesses ou objetivos comuns, ainda que parciais. Pode-se dizer, inclusive, que a vida de uma democracia estável se nutre da interação desses grupos e movimentos sociais de base.

Qual é a diferença, então, entre uma e outra? Se existem coincidências nas definições de democracia e sociedade fragmentada é porque há entre elas uma relação profunda, que produz um efeito de espelho: a sociedade fragmentada é, precisamente, a versão estrutural e profunda da “antidemocracia”; é, justamente, a base social da democracia “formal”.

Uma democracia pode ser formal e restringida por diversas razões. Muitas vezes existem pressões externas que assim o estabelecem (por exemplo, a pressão da dívida externa); em outras ocasiões, a superveniência de fatores de poder antidemocráticos em seu próprio seio gera as restrições e condicionamentos (por exemplo, a pressão política dos exércitos); outras vezes, a falta de experiência política dos mesmos dirigentes faz que a democracia perca em profundidade, depreciando seu conteúdo por práticas corruptas (o que a gente comum, com grande acerto, costuma chamar “politicagem”). Não obstante, todas essas circunstâncias são transitórias e modificáveis: nenhuma delas destaca um fenômeno estrutural da sociedade que gera uma diminuição na possibilidade mesma da vida democrática. Pelo contrário, a sociedade fragmentada é a condição estrutural de uma base social compatível com a democracia restringida, seja porque é submissa a ela ou porque carece de possibilidades de modificá-la.

Uma sociedade em que existem muitos grupos sociais organizados, que estabelecem entre si formas de cooperação ou aliança fundadas em sua capacidade de negociação e pacto, que aspiram a construir formas de hegemonia política através do exercício cotidiano do poder e que têm, inclusive, capacidade para gerar estratégias de autodefesa, é uma sociedade que poderá ter ou não uma democracia social e participativa, mas que se encontra em condições de tê-la. Uma sociedade, ao contrário, em que existem muitos grupos sociais organizados mas isolados entre si, que perderam a capacidade de estabelecer alianças ou pactos e, portanto, se acham na impossibilidade absoluta de construir a hegemonia política; que não desenvolvem formas de cooperação entre si, mas que se embarcam em uma guerra surda, em que mutuamente se agridem e intercambiam seus papeis de vítimas ou vitimadores, onde não tem possibilidades de construir estratégias efetivas de defesa e, portanto, vivem submetidos a formas de discriminação social, essa é uma sociedade fragmentada que, como tal, ou não vive em uma democracia ou se amolda perfeitamente às características políticas das democracias restringidas, isto é, aquelas em que a liberdade democrática é mais uma declamação que uma realidade, a tolerância é uma prática reservada a certos círculos notórios e o poder popular uma vaga aspiração.

Existe uma coincidência chamativa na lógica da dependência: a América Latina caminha, ao mesmo tempo, para a democracia e para a sociedade fragmentada. Existem, ao mesmo tempo, estratégias de democratização junto com as estratégias de fragmentação das quais já falamos. Isso nos descobre um problema político crucial: a democracia real e profunda, quando é uma democracia pobre, em que milhões de pessoas não vivem como seres dignos, por sua própria essência (a vontade geral) se torna, necessariamente, uma democracia transformadora e, por que não?, revolucionária. Por tal razão, uma democracia dependente deve assegurar que não se converterá em uma democracia transformadora. Para lograr esse objetivo, a democracia dependente deve se sustentar em – e gerar ao mesmo tempo – uma sociedade fragmentada.

Podemos permanecer imóveis diante de uma visão pessimista de nosso futuro. Se nossos povos estão sendo atacados em um nível tão primário, existe alguma possibilidade concreta de dotar as nascentes democráticas de um perfil transformador? Ou acaso a fragmentação da sociedade, o processo político-cultural de dominação que converte a todos, ou quase todos os grupos sociais em minorias discriminadas, com o agravante de que os processos de discriminação são produzidos por elas mesmas, se ache em uma posição de tal força, que não existe, pelo momento, poder popular capaz de se opor a ele? Em que pese, ou nos doa, parece que os processos econômico-sociais dos países latino-americanos caminharão durante um bom tempo por essa senda, de um modo irreversível. Não obstante, assim como os processos sociais só podem ser interpretados no tempo longo da história, a vida política real dos povos se projeta no futuro, pelo menos, tão longo como a história mesma. Se poderá objetar que essa última afirmação é um ato de fé, próprio de uma visão escatológica. Nada se pode responder a essa objeção, salvo que toda projeção sobre o futuro – e não existe política sem essa projeção – implica uma determinada cota de fé.

3. Para uma política do encontro

Portanto, o primeiro ato de resistência contra as estratégias de fragmentação é a recuperação do futuro como espaço da política. O segundo passo, ligado ao primeiro, consiste na recuperação da análise histórica, que nos permita uma interpretação genética de nosso presente. Toda gênese, pelo menos no plano da vida humana, nos fala de um processo e nos abre as portas do futuro. O terceiro “passo-ato de resistência” consiste na recuperação da capacidade de encontro: em nível pessoal, o que implica a revalorização dos espaços pessoais para o diálogo, a ideia primária, mas central, de que a vida é impensável e inviável como um ato isolado e individual; como consequência disso, em nível grupal, o resgate da organização popular social, como o horizonte vital mais propriamente humano; por último, em nível coletivo, a recuperação do espaço dos pactos e o consenso intergrupais, isto é, a recuperação da essência da política. Tudo isso implica uma “pedagogia do encontro”, que se enfrenta, com o mesmo efeito de espelho, as estratégias da fragmentação. Ela nos permitirá superar o milenarismo, a morte das ideologias, a peste, a vida light, a cultura do naufrágio, o controle social horizontal e tantos outros fenômenos que a apropriação capitalista do espaço interpessoal quer assegurar, da capacidade de realizar pactos, de construir o consenso e lograr a hegemonia política. Para o poder dominante, já está assegurada a apropriação da força de trabalho, também não corre risco a apropriação das forças de consumo, só resta se apropriar da força mesma.

Parágrafos selecionados de um texto publicado em Revista Pasos Especial Nro.: 3-1992 

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