A Grande Ilusão

A crise econômica desencadeada nos EUA se iniciou num setor da economia e logo depois se estendeu a outros setores e aos mercados internacionais. Esse contágio é sintoma do desequilíbrio existente nas bases do sistema, causado por um crescimento insustentável baseado no consumo resultante do endividamento e na especulação. No entanto, a inevitável e dolorosa correção desta situação representa uma oportunidade para reafirmar os princípios básicos do desenvolvimento saudável, que não são apenas econômicos, mas também morais.A crise econômica norte-americana, que se iniciou com a inadimplência dos mais modestos detentores de hipotecas imobiliárias, ou seja, num recanto da economia, se estendeu rapidamente à totalidade do setor financeiro, causou a queda estrepitosa de um dólar já debilitado, e acabou originando mal-estar e desconfiança –e, sobre tudo, incerteza— em todos os mercados internacionais.

Quando uma causa pequena produz grandes efeitos, a própria desproporção é sintoma de que as grandes estruturas subjacentes são mais fracas do que pensávamos.

Nos Estados Unidos não se fala mais em “aterrissaagem suave”: agora estamos em plena aterrissagem forçada. As dificuldades econômicas já afetam os segmentos mais altos da sociedade. A bolsa de valores faz malabarismos, mas seu saldo líquido é negativo. O dólar perde valor dia após dia. A crise hipotecária tem virado pânico generalizado. E, ainda por cima, segundo as avaliações dos economistas Joseph Stiglitz e Linda Bilmesi, as despesas com a desastrosa guerra de Iraque chegam a US$ 3 trilhões.

Em Washington já não se ouve o canto das sereias republicanas, que prometiam ao país prosperidade sem sacrifício, dispêndios desmedidos, redução de impostos e até isenção fiscal, e anunciavam ao mundo sua prepotência universal, para finalmente acabarem proclamando urbi et orbi o grande mandado da época, aquele do insolente motete do século XIX francês: “Enrichissez-vous messieurs!”.

As diferentes bolhas especulativas estouraram uma a uma (antecipo que a próxima bolha a estourar, num prazo de até um ano, será o chamado boom das commodities: metais, hidrocarbonetos, carnes e grãos, que afetará sensivelmente os países do Sul). Uma vez dissipadas as bolhas, é possível ver claramente uma realidade mais moderada, que tem sido escamoteada pela folga ininterrupta da mídia.

Saiba o leitor que dos 300 milhões de pessoas que hoje habitam nos Estados Unidos, 37 milhões (muitas delas crianças) vivem na pobreza total. Trata-se dos indigentes. Acrescentemos a elas todas as pessoas cuja renda anual oscila entre 20 mil e 40 mil dólares (para um grupo familiar de quatro pessoas): outros 60 milhões. O resultado é assaz desgradável: num país que diz ser o mais rico do mundo, quase um terço da população vive na indigência ou numa situação muito próxima da pobreza. A expressão “próxima da pobreza” não é um eufemismo. Todos aqueles que têm uma renda anual inferior a 40 mil dólares, têm empregos precários, com salários que não aumentam ao ritmo da inflação, e com uma cobertura médica insuficiente. Para eles, cada dia é mais difícil fazer frente às despesas com alimentação, saúde, combustível, transporte, e educação para seus filhos. Esse terço da população é presa do medo: medo do futuro, medo da globalização, medo dos estrangeiros, medo dos imigrantes. A aflição e o medo são legítimos, mas também são caldo de cultura para mobilizações demagógicas.

Esse medo que surge do fundo da sociedade já está atingindo os segmentos médios —ou seja, aqueles cuja renda anual oscila entre 50 e 100 mil dólares. Esses estratos, que constituem a proverbial classe média norte-americana, têm sido alvo de alguns estudos sociológicos, mas geralmente não recebem a atenção publica que eles merecem. Atrevo-me a aventurar o seguinte diagnóstico: a classe média —figura emblemática da civilização do Norte— é sujeita (1) a uma forte compressão social, e (2) a um declínio intergeracional coletivo e sustentado. Vejamos o significado disto nos parágrafos a seguir.

Faz cinqüenta anos, os norte-americanos de classe média dispunham de empregos satisfatórios e seguros, com perspectivas de importantes melhorias salariais e com a esperança de um futuro ainda melhor para seus filhos. Eles podiam contar com uma bela casa no subúrbio, um ou dois carros familiares, uma hipoteca amortizável em 30 anos, e uma aposentadoria sem tribulações ao final do caminho. Geralmente, só um dos adultos do grupo familiar (média: 4 pessoas) trabalhava. Hoje, esses empregos escasseam.

Para fazer frente a essa escassez de empregos bons e seguros, a classe média teve de utilizar outras estratégias. Numa família padrão, agora são dois os adultos que trabalham. As mães e esposas começaram a trabalhar. Num esforço por ver o lado positivo da situação, essa necessidade de ter dois empregos foi considerada um avanço em relação à igualdade de gênero, e uma liberação da mulher de seu papel convencional dentro da família. No entanto, a dura realidade era que para manter o mesmo nível de vida antes bastava um emprego e agora é necessário ter dois.

Além disso, homens e mulheres começaram a trabalhar mais horas e a terem férias mais curtas. Em alguns casos, inclusive tiveram de manter vários empregos simultaneamente. Em resumo: todos tiveram de andar mais rápido para se manterem no mesmo lugar. A imagem que vem à minha mente é a de toda uma classe social posta a correr numa academia de ginástica. Por sua parte, os economistas celebraram ao constatarem um aumento na produtividade: mais uma vez, o esforço por ver o lado positivo da situação.

Finalmente, indivíduos e famílias lançaram mão do crédito pessoal e hipotecário para conservarem o estilo de vida a que estavam habituados. Em lugar de pouparem, eles se endividaram cada vez mais. Começaram a pagar o sonho americano em muitas prestações. Todos esses fatores, conjuntamente, constituem o que eu chamo de “compressão social da classe média”. Essa compressão, por sua vez, infunde nas pessoas a suspeita ou o temor de que seus filhos não possam ter uma vida mais folgada nem um futuro mais próspero ou seguro. Esse é o significado disso que eu chamo de “declínio intergeracional” —um pessimismo inédito numa classe social tradicionalmente inclinada à idéia de progresso em todos os aspectos.

Em um patamar mais alto, no segmento da sociedade que podemos chamar de classe dirigente, elite do poder, ou classe dominante, houve uma mudança de hábitos notável e alarmante nos últimos anos. Pensa-se (e investe-se) menos no interesse do país ou do sistema em seu conjunto do que no benefício imediato ou a curto prazo. As políticas públicas do último decênio se caracterizaram pela grande transferência de riqueza “para cima”, pela sistemática redução da carga tributária aplicada aos segmentos mais abastados, e pelo enorme endividamento nacional. Em última instância, todos os grandes problemas coletivos –que vão da poluição ambiental até o envelhecimento da infra-estrutura, a previdência social, a saúde pública e o pagamento de juros da dívida— são transferidos do presente para o futuro, ou seja, dos que vivem hoje para aqueles que vão viver amanhã. Não deve nos surpreender o fato de que essas políticas sejam cada vez mais rejeitadas por vários segmentos da população (entre os quais me encontro), porque elas vão contra um princípio básico do desenvolvimento humano que vai além de viver individualmente em plenitude (objetivo muito louvável): trata-se de garantir que aqueles que nos sucederem no caminho da vida vivam tão bem quanto nós ou melhor. De um ponto de vista econômico, esse objetivo tem um nome: sustentabilidade. De um ponto de vista moral, chama-se solidariedade intergeracional. São dois lados da mesma moeda, e é precisamente essa moeda que está em jogo nos Estados Unidos do ano 2008.

As categorias econômicas são também categorias morais. Adam Smith, o fundador da economia moderna, não ensinava “ciências econômicas” em sua Escócia natal. Ele dava aulas de “filosofia moral”. Considerava que seu melhor livro não era A riqueza das nações, obra que o fez famoso, senão um tratado titulado Teoria dos sentimentos morais. A partir dessa vênia dada pela economia clássica de Smith, nós podemos dizer que “investir” significa “oferecer algo ao futuro”. Ao invés, contrair dívidas significa “tirar algo ao futuro”. Como podemos ver, a partir dessa simples oposição conceitual econômica surge imediatamente uma disjuntiva moral.

Quando dizemos que o alto nível de endividamento publico e privado é “alarmante”, queremos dizer que, ao longo de pelo menos uma geração, os norte-americanos têm fraudado seu próprio futuro para viver somente o aqui e o agora (Os argentinos que lerem estas linhas reconhecerão perfeitamente a questão). O desenvolvimento econômico depende do nível dos investimentos aplicados tanto em capital físico (tecnologia, infra-estrutura, sistemas e máquinas) quanto em capital humano, que não é outra coisa que nossos conhecimentos e nossa boa saúde. Quando, em lugar de investir nesses dois tipos de capital, não se da atenção à infra-estrutura física e humana, e se provoca a “compressão”, o esgotamento e a desmoralização da força laboral (a classe social na academia), então é inevitável cair na tentação de dissimular o problema através da riqueza ilusória que vem do dinheiro emprestado. Mas dessa maneira, um país acaba roubando e enganando a si mesmo, e deixa um fardo muito pesado a seus descendentes.

Hoje se chegou ao final de uma grande ilusão: viver do que se tomou emprestado em base a um capital fictício. Os cartões de crédito atingiram o limite, as hipotecas têm que ser saldadas, a casa própria vale menos do que o montante que se tomou emprestado para adquiri-la, os estrangeiros se mostram reticentes em dar crédito em troco de títulos do Tesouro porque recebem ordens de pagamento em moeda desvalorizada. Ainda por cima, uma guerra mal planificada e mal executada consome recursos cada vez mais quantiosos. Em resumo: quem paga o esbanjamento e os pratos quebrados? A briga pela conta e o remédio tem começado.
Toda crise aguda é também uma oportunidade. Trata-se, sobre tudo, de uma ocasião propícia para um grande ato de sinceridade coletiva. É por isso que todos aqueles que eram vítimas da dissimulação ou da má fé, a partir da crise sentem-se, no fundo, liberados. A verdade, embora seja dura, também representa uma catarse. Hoje, essa catarse deve começar pelo fato de reconhecer que um país –desde o mais poderoso até aquele que não tem tanto poder— só pode ir para a frente por meio de uma força de trabalho educada, qualificada e dignificada, de um alto nível de investimentos em infra-estrutura e tecnologia que gerem uma longa cadeia de empregos, e de um sistema tributário justo e progressista que colete de maneira efetiva os recursos necessários para o pagamento dos serviços de governo. Depois de tantos anos de loucas ilusões, alguns consideram que essa perspectiva representa um “rude despertar”. Mas não é assim. De um ponto de vista positivo, este também é um sonho: um sonho saudável, que sempre se chamou “o sonho americano”.

nota:
i. Joseph Stiglitz and Linda Bilmes, The Three Trillion Dollar War. The True Cost of the Iraq Conflict, New York: W.W. Norton, 2008.

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